Trechos do livro de contos Era uma vez um mês seis, de Yan Rego

 por Yan Rego__







Do conto “Tu tá ligado que eu te amo”.


Ó, tu tá ligado que eu te amo, sangue do meu sangue. Mas que trabalho tu me dá, sem caô. Acabei de desligar o telefone com tua mãe, ela bateu neurose legal. E eu te amo, mas tô de férias porra. Daqui a pouco volto pra São Paulo, nem sei andar mais por aqui, como vou te procurar no Jacaré se eu já fico meio perdido em Vila Isabel? Dei uma desculpa pra tua mãe porque eu só queria capotar, pegar uma praiana amanhã. Aí por trás dela a vovó falou:

“Quem não escuta a família não escuta ninguém”.

Foi ouvir isso e a ligação cortou. Na real não foi a linha, foi meu ouvido que deu ruim. A vovó é braba e praga dela é mais, tá maluco. Tentei ouvir as mensagens sobre um protesto do Amarildo que vai rolar na zona sul. É aquele cara que sumiram na Rocinha, tá ligado, né? Tu devia ir comigo, aliás. Mas aí, papo reto, não consegui ouvir nada. Era como se eu tivesse acabado de tomar caixote e a minha cabeça fosse um aquário cheio de peixe morto. Não teve jeito, botei uma roupa, meti o pé pro Jacaré e tô no Procurando Nemo atrás de tu.

Desço do 629 (meia vinte e morte), passo por uma ratazana pique o Mestre Splinter que a gente assistia junto, pego a vielinha lotadona. Eu tinha que escutar uma falação do caralho, mas essas vozes todas parecem a TV quando tua mãe esquece de comprar bombril pra botar na antena. Porra, tá foda mané. Marco um cinco na viela, perdidão de tudo, coroa, criança, pastor, bicicleta e cachorro atrás de mim querendo passar. E eu aqui panguando. Aí uma mão me sacode fortão, me tira da passagem e o bonde passa fazendo careta e me mandando o dedo do meio. O dono da mão gruda em mim e fala a mesma coisa muitas vezes, frenético. Agora o bagulho é concentrar pra fazer leitura labial. Sorte que o cara se ligou e tá lançando o slow motion.

“Pra onde, playboy? Tu vai pra onde?”.

Que doideira, vou te falar. E eu tento falar, pro baile, pro baile irmão, vou só pro baile guerreiro, mas quem disse que eu sei se a voz sai. Aí o maluco ri, perde a linha na risada, me aponta um caminho torto e eu vou subindo. Ele acha que eu tô doidão, certeza. E só doidão mesmo pra explicar, porque eu vou subindo e tudo começa a tremer, dá pra sentir até na sola do pé e não é vento não. É o paredão, e que paredão, filho.



Do conto “Acorda, Brasil”.


Desci do ônibus e botei a moçada na rua. Distribuí as marmitas quando entramos na marginal Tietê. Na marginal Pinheiros, abasteci todo mundo de Coca-Cola e paramos num posto pra urinar. Mal desci do ônibus na Paulista, botei a moçada na rua e o filho da Dilma, vestindo a camisa com uma lágrima saindo da bandeira nacional, puxou meu braço.

“Seu Zil, vou ali rapidinho, tô apertado”.

“Pombas, meu, que bexiga frouxa é essa?”, eu disse.

“É que o menino fica com vontade quando fica nervoso”, Dilma falou. 

“Tem muita gente aqui, seu Zil. Ele estranha”.

“Um marmanjo desses, Dilma. Não vem querer me enrolar, hein. Será que é mal do nome?”, eu disse e ri. Lembrei daquele ditado, desgraça pouca pra pobre é bobagem, e ri mais.

“Ai, seu Zil”, ela disse e riu, sem graça. 

“Toda hora o senhor faz isso. Eu não tenho nada a ver com essa mulher”, ela disse e o riso virou um sorrisinho fino e frouxo nos beições grossos. “Eu não vim lá de lá longe pra pedir pra ela largar mão de nós?”.

“Pedir, não”, eu disse, “exigir! Você tá aqui hoje é pra fazer história. Vai logo atrás do banheiro pra ele, mas não é pra bater perna não”. 

Eu lembrei, porque é bom lembrar, se não a moçada fica achando que veio a passeio.

Gritei a Neiva, que chegou com a blusinha amarela, os peitões, os saltões plataforma, as varizes verdes das pernas e shortinho jeans igual aos de Miami que comprei pra ela em Americana.

“Ô, Neiva, você não combinou com a Dilma direito? Tá toda cheia das histórias”, eu disse.

“Ih, Brabrá, acorda. Essa daí tá impossível. Deu pra reclamar de tudo, esquecer de tirar a manteiga da geladeira antes da gente acordar…”.

“Mas no quinto dia útil essa lombriga tem memória de elefante”, eu disse.




Do conto “Era uma vez um mês seis”.


6.

Era uma vez um Pedro Malasartes. Não era português, tampouco descendente mouro do Prestes João. Era nascido no Rio de Janeiro e não negava a origem, pois se achava muito malandro. Aos dezenove se mudou para São Paulo para estudar ciências sociais na melhor universidade do país. Era bom com palavras, mas preferia calar as desigualdades e abraçou as boas artes: se filiou a um partido leninista, fez campanha para candidato desconhecido, foi a congressos da UNE, ocupou reitorias e, num mês seis que era uma vez, lutou, venceu, quase morreu e se sentiu muito vivo com sua cabeleira de cachos em levante. O mês acabou, os anos passaram, o país se endireitou e Pedro desistiu da política porque já nasceu torto (e a coragem é uma fase, como a puberdade). Quase aos trinta anos de idade, careca, professor numa escola particular que não lhe paga seus direitos e não lhe faz bater o peito, ele resolve apostar na literatura e começa a dizer por aí que é escritor. Agora nosso Pedro Malasartes, que se sabe tanto perspicaz quanto paspalho, prepara um livro de contos inédito e inovador, cheio de crítica social foda, para lançar no aniversário de dez anos daquele mês seis que foi uma vez – ideia muito original, ele pensa, e tem certeza de que as editoras vão pensar o mesmo.

Moral da história: não tem, mas, se conseguir vender seu livro, Pedro Malasartes promete inventar uma bem convincente, porque a freguesa tem sempre razão.





Yan Rego (@yanrego) é carioca de Vila Isabel, nascido em 1993. Cientista social de formação, atuou como professor de sociologia no Cursinho Popular Carolina de Jesus. Seu livro Agá recebeu o segundo lugar na categoria contos do Prêmio Biblioteca Digital 2021. Roteirista do curta-metragem O nariz de Euzébio e co-roteirista do longa-metragem Lulinha, meu santo!, com Camila Ribeiro, ambos em fase de captação. Era uma vez um mês seis, livro de contos publicado pela Editora Paraquedas, é seu lançamento.