Entre condores e abutres... | Ariel Montes Lima

 por Ariel Montes Lima__




ENTRE CONDORES E ABUTRES: COMENTÁRIOS SOBRE DOIS POEMAS DE CASTRO ALVES


Palavras-Chave:
Poesia Brasileira, Castro Alves, Análise, Crítica Literária. 


Introdução

No presente texto, apresentamos uma breve análise dos poemas Vozes d’África e Navio Negreiro, do poeta baiano Castro Alves. Para tanto, nos baseamos na crítica literária produzida pelo professor Alfredo Bosi (1992). 

Objetivamos, por meio do presente texto, apresentar alguns elementos de intertextualidades presentes na obra condoreira do poeta, bem como estudar os diversos efeitos de sentido presentes nas duas obras.  


Vozes D’África 

Em seu livro Dialética da Colonização, Alfredo Bosi (1992) nos traz diversos elementos em sua análise do poema Vozes D'África. Entre eles, há, já em primeiro plano, o contexto histórico social no qual o poema foi escrito. Se considerarmos a rebeldia, enquanto forma de desafiar os padrões como uma das propostas românticas, então, talvez esse movimento poético se esclareça como uma maneira de, a despeito de uma ordem pré-instituída, trazer-se o outro viés do assunto para impactar o leitor. Olhemos além do texto de Castro Alves, dialogando com outro expoente desse período, Victor Hugo, em seu “Les Misérables” nos traz, antes dos arquétipos de herói e heroína puros e intocados, um ladrão condenado e uma prostituta como protagonistas. Por outro lado, além de mostrar que o mundo é maior do que as fronteiras da corte, tal recurso nos obriga a perceber a humanidade por trás das figuras subalternizadas.

Outro aspecto do texto de Bosi diz respeito à elaboração do poema, de forma que a marcação das vozes indica uma espécie de fusão entre eu-lírico e o mártir-África. Tal elemento, que está para além dos versos da obra, encontramos também em Navio Negreiro. Notamos que, conforme o texto flui, maior a proximidade entre o poeta e o sofrimento daquele povo. Se nos voltarmos outra vez para a observação das propostas românticas, os sentimentos fortes, (extenuantes, por assim dizer) estão no âmago do movimento, que o diga, descendente direto da escola alemã “Sturn und Drang", literalmente Tempestade e Ímpeto (CANTON et al., 2018). Ora, que termo melhor definiria a enorme carga sentimental da lírica abolicionista de Castro Alves do que Tempestade Sentimental? Diferente, claro, do seu uso mais comum, ao referir-se às paixões febris de algum Werther , mas ainda enquadrada à estética proposta.

Chegamos, então, a um novo elemento. Sutil, porém importante dentro das diretrizes da terceira geração romântica, a imagem do condor, transformado em abutre , no poema, carrega em si o aspecto simbólico da liberdade. Notemos que a oposição marcada não diz respeito à diferença biológica entre os animais, até mesmo por que o condor , a título de curiosidade, pertence à mesma ordem , Carthidae , que o segundo. Logo, apelamos para a esfera conotativa da sentença: o primeiro pensamento que a visão majestosa da imponente ave a sobrevoar os andes é a liberdade. Um ser pleno , senhor de suas ações e fiel tão somente aos seus ideais, tão de acordo com os ideais românticos. Por outro lado , olhamos a visão de aparente decadência de um ser a espreitar uma carcaça pútrida, e sentimos qualquer coisa de um asco involuntário. Agora temos a imagem dessa civilização-abutre a rondar a miséria africana para “nutrir-se de seu sangue”.

Ainda a partir desse olhar, encontramos os vários clamores, que se reiteram ao longo do texto à figura Divina. Podemos ler essa manobra textual juntamente com a que Bosi nos traz ao propor a “comunhão” de uma África arcana e uma África-sujeito. Ao fazê-lo , o autor nos suscita a visão se um continente secular e animado ,que presenciou seus filhos morrerem , nascerem , serem vendidos etc a clamar embalde por um auxílio celeste. Tal recurso é muito mais do que um recurso para conferir intensidade sentimental à obra , trata-se da representação desesperada de alguém que vê o mundo que conhece ruir e recorre à única esperança de ajuda , e vê-se desamparada por esse “Deus Piedoso".


Navio Negreiro

Quanto ao seu poema Navio Negreiro, Castro Alves nos pinta, através de sua maestria poética o “sonho dantesco” da escravidão. Para tanto, o poeta nos traz diversos aspectos , visuais e sentimentais, de uma cena , um navio negreiro cruzando o mar. Entre esses aspectos, encontramos , logo nos primeiros versos uma ambientação quanto ao local onde tudo se passa. Observamos nas três primeiras quadras uma visão tempestuosa acerca da natureza. Como uma prévia do porvir , o mar se agita em ondas , como uma “turba de infantes inquieta" .O céu e o mar se fundem em um “abraço insano".

Surge , contudo ,na quarta quadra , a imagem do veleiro  a lutar contra as ondas. Como um espectador da cena , o poeta nos fornece uma proporção quase motora da cena .Isto é , visualizamos um barco apressado a fugir do  campo de visão do eu-lírico. Nesse instante , Casto Alves nos dá mais uma mostra de sua habilidade poética evocando outra entidade natural , o albatroz.

Tal qual o condor ou a águia, o albatroz vem como um símbolo de liberdade e sublimação. Ou seja, poderíamos supor que ,ao fim da primeira parte , o poeta já não é o mesmo que via apenas a tempestade no oceano revolto , agora , ele se sublimou para além da sua limitação física e pode ver , portanto , como vê o “ leviatã dos céus”. Essa hipótese se torna ainda mais clara à luz da terceira parte da obra quando o poeta afirma que a cena que se desenrola no navio não é para o olhar humano.

Fora isso, há um aspecto predominante ao longo do texto: a aversão do eu-lírico àquele horror. Em vários momentos, encontramos marcas de sentimentos expressos , como no verso primeiro da quarta parte do poema “Era um sonho dantesco...”. A escolha vocabular aliada à cadência angustiante dos versos ainda corrobora para que seja esse um dos poemas mais fortes do romantismo.

A perspectiva abolicionista, por sua vez se mostra explicitada na quinta parte do poema , quando o poeta interroga o mar por quê esse não acabava, de uma vez ,com todo aquele horror .Perspectiva essa reafirmada ao haver a sugestão para que o mar se revoltasse e , com um tufão, “varresse" de si a infâmia escravista. Não suficiente, o poema se encerra com uma ordem “ Colombo ! fecha a porta de teus mares!”

Quanto à imagem das mazelas humanas, igualmente, o poema se mostra bastante expressivo. Dividido em dois planos de miséria. Castro nos apresenta a figura daqueles que outrora tiveram uma vida agradável em sua terra e, agora, padecem como escravos “...Homens simples, fortes, bravos ...Hoje míseros escravos sem ar, sem luz, sem razão...”. Por outro lado, há o plano em que retumbam os sofrimentos imediatos ,ali sofridos. Dentre eles: fome, doenças e violência, representados na penúltima décima da quinta parte “...-Férrea, lúgubre serpente- Nas roscas da escravidão. E assim roubados à morte, dança lúgubre coorte ao som do açoite...Irrisão!...”


Referências Bibliográficas

ALVES, Castro. Obra completa. Org. e notas Eugênio Gomes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1984. 

BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. Companhia das Letras, São Paulo, 1992. 

CANTON, Johan et al. (Org.). O Livro da Literatura. Editora Globo, São Paulo, 2018. 







Ariel Montes Lima
é pessoa trans non-binary, psicanalista e professora. Em 2022, publicou os livros Poemas de Ariel (TAUP), Sínteses: Entre o Poético e o Filosófico (Worges Ed.) e Ensaios Sobre o Relativismo Linguístico (Arche).