A recolonização da escuta , artigo de Michel Carvalho

 por Michel Carvalho__



Foto de Zarak Khan na Unsplash
       
A recolonização da escuta (o túmulo da música independente)


Serviço de streaming está monopolizando nossos ouvidos e o impacto disso na qualidade da produção musical.

Pois é, o mundo gira, mas as contradições continuam. Muita gente acreditou que a Internet iria ajudar os artistas a se libertarem da lógica mercadológica do monopólio das grandes gravadoras de outros tempos. Em alguma medida isso pode ter acontecido momentaneamente, mas o que mudou de fato, foi a dinâmica de controle da indústria musical na mão de algumas poucas multinacionais.

Ainda que muitos vejam as plataformas de streaming como uma ferramenta indispensável para a exposição de seu trabalho artístico pela possibilidade de disponibilizar suas músicas online sem a necessidade de desembolsar muito dinheiro pra isso ou de uma grande gravadora por trás - usando serviços de distribuição digital e permitindo que sua música alcance audiências em todo o mundo, mesmo sem uma presença física - É interessante levar em consideração que, para além da exposição desejada, essa falsa sensação de independência tem nos tornado totalmente dependentes e sujeitos às políticas e algoritmos das plataformas de streaming, onde mudanças constantes nas regras impactam na visibilidade, produção e receita dos artistas independentes. A compensação gerada na imensa maioria das vezes é insuficiente para cobrir sequer os custos de produção do próprio fonograma entre outras várias problemáticas.

Em 2024, o Spotify irá deixar de pagar faixas que não chegarem a 1k de plays por ano. Esse dinheiro vai para os maiores artistas da plataforma (maioria gringos), aumentando ainda mais as contradições já existentes no aplicativo. O valor do pagamento médio por execução é de cerca de 2 centavos de real. Esse dinheiro não vai diretamente para o artista. A maior parte vai para quem detém os direitos sobre o fonograma - como é conhecida a gravação da música. Uma parcela menor vai para o autor, que detém os direitos sobre a composição em si, abrangendo a melodia e a letra. Até o ano passado, o Spotify já havia desembolsado para artistas como a Taylor Swift cerca de 350 milhões de reais. Mas para músicos independentes os valores pagos não dão nem para comprar um par de baquetas. Usei o exemplo do $potify, mas se aplica pra YouTube, Deezer, Normal Free etc.

Além disso, a dinâmica do algoritmo dessas plataformas vem influenciando severamente desde o processo criativo, passando pela padronização da qualidade e timbragem de mixagens e masterizações, até mesmo nos discursos vinculados à música (afinal, não é todo discurso que engaja), condicionando de forma hegemônica nossa escuta e alterando nossas formas de expressão e comunicação, subordinando o mercado musical à estrutura das mídias sociais onde a curadoria de festivais e as casas de shows são baseados em número de seguidores, por exemplo. Essa reconfiguração das formas de produção musical de uns anos pra cá têm alimentado a lógica que para ter potencial no mercado fonográfico, os artistas devem trabalhar para o algoritmo dessas empresas.

É fato que esse fenômeno tem muito mais impacto para a grande indústria, mas acaba contaminando todos que ocupam esse mesmo ecossistema. Qualquer artista que tenha perfil em rede social e música nos serviços de streaming esta subordinado de alguma maneira a essa estrutura. O monopólio dessas plataformas não nos dá opção a não ser nos sujeitar a permanecer nesse ambiente, mesmo sendo constantemente usurpados e hostilizados.

Na atual dinâmica dos streamings, nosso corre independente se tornou “grátis” a medida que, paradoxalmente, custa cada vez mais caro produzir nos moldes que o algoritmo pede. Na real, o que gera receita é publicidade, a música se tornou apenas a trilha sonora na sociedade do espetáculo, tornando tudo uma grande propaganda pra vender algo. As grandes questões são: Vamos continuar alimentando nossos exploradores? Qual seria a saída desse abismo?

Algumas pessoas apontam para outras plataformas tal qual o iTunes ou o Bandcamp como uma alternativa possível, mas que também possuem uma série de limitações. Ao contrário das plataformas que pagam por views, o Bandcamp permite que os usuários comprem os discos ou singles dos artistas no formato digital. O grande problema é que a venda desse formato de música não vingou no Brasil e existe muita falta de interesse em guardar arquivos digitais hoje em dia. Mesmo que o artista tenha um número de audições alto, a venda do álbum digital se dá em dólar, isso pressupõe a existência de um público no exterior.

Como se vê, a uberização do artista independente diante desse novo panorama de produção musical é um fenômeno bastante complexo e possui várias camadas que esse descompromissado papo de mesa de boteco não conseguiria abarcar. Assim sendo, acredito que a saída se dê pela via do fortalecimento de relações reais como: ir aos shows, comprar um merchandising do artista que você gosta, apoiar campanhas de financiamento coletivo - ou seja, nenhuma novidade. O papel de um público comprometido e ativo é importantíssimo nesse sentido. Não sou contra que se escute ou se use plataformas como o Spotify (inclusive também uso bastante), pois cumpre um papel e pode servir até pra dar visibilidade pros lançamentos físicos e demais produções. Lembrando que a venda de míseros 7 CD numa gig desleixada em um final de semana pode ser mais lucrativo e vantajoso que um ano de Spotify.

É essencial reconhecer que a tecnologia avança, as coisas progridem e que pouquíssimas pessoas ainda escutam música no formato físico, porém nem toda ideia de progresso é estritamente benéfica - basta olhar o preço que o "progresso" está nos cobrando enquanto sociedade. Por isso, penso que a troca do streaming por discos, CDs e MP3 (ou o uso conjunto de streaming e mídias físicas) exige esforço. No entanto, a escuta é diferente. A experiência é mais focada, mais engajada (veja só). No final, é você que decide se sua escuta é ativa ou passiva, se é algo que você está fazendo, ou se é algo que você está apenas recebendo apaticamente. Afinal, não dizem por aí que tudo é político.





Michel Carvalho, “Um bicho imaginante, ligeiramente polido e com uma tênue camada de civilidade por fora”. Nascido em 89; É delmirense. Geógrafo e servidor público do IBG.  Produz e lança discos de bandas undergrounds e de compositores experimentais por sua gravadora Quilombo Discos. Destaca-se o álbum “Escutas e Estéticas do Alto Sertão Alagoano” (2022) vencedor do Prêmio Aldir Blanc. Envolvimentos de duas décadas com a cena underground e contracultural nacional. Manteve o pub, espaço contracultural e bar Gruta, onde diversas bandas nacionais e internacionais puderam se apresentar. É guitarrista, baixista e vocalista nas bandas de hardcore extremo, Ataque Cardíaco e Monstromorgue.