A mais querida, um conto de Adriano Espíndola Santos

 por Adriano Espíndola Santos__





De início, por receio, não quis contratá-la. Foram dias até me decidir. Ninguém a conhecia por aqui. Foi indicada por minha antiga diarista, como sendo uma peça rara, ainda que inexperiente para o serviço. “Seu Cláudio, ajuda ela, a
pobi tá numa situação muito difícil!”. Chamei-a, enfim, para conversarmos. Logo percebi que ela não olhava na minha cara, e, curioso, perguntei a razão. “É que nós tem vergonha, e pode o senhor não gostar”. Soube, com o tempo, que Luciana, e toda a população de Jaguaribara, não olhava nos olhos de patrão, porque isso era considerado desrespeito. Passou fome umas tantas vezes. De onde vinha, não havia assistência para os pobres; vez ou outra ganhava uma “caridade” da igreja, para aguentarem um mês na “santa paz” – quando o alimento não durava duas semanas para uma família grande como a sua, de quinze membros. Falou, aos prantos, que um irmão havia sido morto pelos coronéis – e não revelou o nome do mandante, apesar de saber, intuí. E acrescentou que os pais pediram para os mais velhos se espalharem, para procurarem emprego, pois não havia mais como mantê-los: o que tinham era para os menores, até ficarem taludos e procurarem o seu rumo. O pai de Luciana era vaqueiro e passava meses longe de casa, trabalhando em outra cidade, para os confins de Betânia. A mãe é que ouvia a lamúria dos filhos, e estava em tempo de ficar doida, sem saber o que fazer. Disse que, rumando ao Rio, no momento de maior dor, teve de se “entregar” a um caminhoneiro, para não ser morta, e foi abandonada numa rodovia, de onde se virou para arrumar amparo. Depois de dois meses, chegou ao bendito destino. Estava acuada com o tanto de gente e de prédios. O mar, que era um fascínio que queria conhecer, ficou em segundo plano. Precisava se virar depressa, para não morrer de fome; pobre não tinha luxo de ficar apreciando o mar. Aprendeu a coletar recicláveis, o que lhe deu uma pequena renda para se manter, ainda nas ruas. Por obra dos céus, foi amparada por dona Graça, uma moradora de Copacabana, que lhe cedeu, por um período, um quartinho no fundo do prédio e em troca ela deveria ajudar na zeladoria. Aprendeu a limpar na marra. Conheceu o zelador Tonho, também nordestino, com quem se amasiou. Foram morar na Rocinha, para o espanto e a felicidade de Luciana. Ela só tinha dezessete anos, uma certidão de nascimento e cinco mudas de roupa. Tirou, só aí, o RG e a carteira de trabalho, e ganhou o passaporte para a dignidade. Luana, que sabia de minha necessidade, me contou sobre Luciana numa ligação de súplica, da qual nunca me esqueci. E que dádiva a ter encontrado! Luciana está comigo há dez anos. Quando me casei, ela arrumou todo o apartamento para receber Helena, minha esposa. Quando fraturei a perna, ela organizou a minha recuperação. Quando fui internado, ela dormiu três noites no hospital. Quando tive filhos, ela criou como seus – já que era, como dizia, “seca do ventre”, ou seja, infértil. O grande problema que enfrento, até hoje, é para que ela tire verdadeiras férias – com tudo pago, em Cancún ou em Fortaleza –, porque tem medo de perder o emprego, quando ela é uma das mais queridas joias do meu coração.





Adriano Espíndola Santos
 é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, e em 2021 o romance “Em mim, a clausura e o motim”, estes pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com as Revistas Mirada, Samizdat e Vício Velho. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária e em Revisão de Textos. Membro do Coletivo de Escritoras e Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto. instagram: @adrianoespindolasantos | Facebok:adriano.espindola.3 email: adrianoespindolasantos@gmail.com