A vó sem o vô, crônica de Marcela Elisa

por Marcela Elisa__



              Olhei a fotografia dela sentada no espaço vazio, me lembrei que ele não está lá desde o dia vinte e oito. Por toda minha vida vi os dois juntos. Eles não eram um casal comum, não. Muitas vezes ficava olhando de longe e percebia o vô acariciando a mão da vó em cima da mesa ou ainda, enquanto a vó cozinhava, lá estava ele, sentado na beira do fogão a lenha, esquentando as costas para, minutos depois, ela dizer: “Oswardo, não faz bem respirar essa fumaça”. Ele dava de ombros, queria mesmo era ficar perto dela.

Quando chegou a pandemia, os dois se mudaram para a casa da tia Denize e lá permaneceram por anos. Ali refizeram a vida e colocaram uma coisa na cabeça que assim que tudo aquilo passasse, construiriam a casa deles na roça. Seria a quarta casa dos dois. Eu não sei se você já construiu uma casa e sabe da canseira que dá, mas a vó e o vô construíram quatro. Uma na cidade, uma no Mato Grosso do Sul, outra na cidade e essa na roça. Da última vez que conversei com ela sobre isso, a gente caminhava pela horta que ela plantava e mirava o terreno aplainado: “Veja, fia, aqui vai ser a cozinha e ali vai ser o lugarzinho pro seu vô fazer as estripulias dele”. O vô vivia com os dedos machucados de marteladas e serrotes mal encaixados, consertando coisas, construindo coisas, mas não se importava. Era um gosto ficar o dia todo com as ferramentas ao mesmo tempo que a vó cuidava de fazer as coxinhas para vender.

Na semana que o vô ficou adoeceu, eu estava no Alagoas dando aulas só para mulheres, em um assentamento chamado Amor. Durante dias e dias, a família se revezou para cuidar dele e a vó não arredou o pé de dentro do hospital, me contou a prima Liara. Em uma quarta-feira, com o coração espremido no peito, pedi a ela que colocasse um áudio no ouvido dele para que eu dissesse o quanto amei ser sua neta. E eu amei mesmo. Mais tarde, a prima me contou que o vô estava falando sozinho na cama do hospital. Ele conversava com seus irmãos, já em outro plano, e dizia que não estava pronto para se juntar a eles, pois precisava se despedir de sua amada.

Naquela manhã, eu fazia meus exercícios cotidianos com halteres emprestados que encontrei no escritório dos donos da casa que me hospedavam em Maceió. Havia puxado o tapetinho para realizar uma série de quinze repetições do crucifixo e vi meu celular acendendo, repetidamente. Depois de semanas de internação devido a uma pneumonia, a mensagem do meu irmão era curta: o vô descansou. 

Solucei por horas. Eu ali, longe de todos, um dia antes de embarcar de volta para nossa cidade, tirei o tênis e solucei. Por horas. 

Observando a fotografia da vó sem o vô, não sei para onde olhar. Não estou procurando o vô, nem vejo a vó como incompleta. Talvez seja o retrato da saudade que sinto daquele par de cabelos brancos andando de mãos dadas como se a vida e o amor fossem eternos e a morte um mero detalhe. Mas não são.



Me chamo Marcela Elisa e sou mãe do Francisco, além de escritora, professora na educação básica e pesquisadora da Linguística Aplicada. Atualmente, moro no sul da Bahia e me dedico a ensinar Língua Portuguesa para a comunidade de Taipu de Dentro, enquanto escrevo meu primeiro livro sobre as experiências de ensinar e aprender pelo Brasil afora.  No mais, gosto de tarot, de ir a shows e de suar na corrida.