por Nely da Costa Barbosa__
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Foto de ran liwen na Unsplash |
Durante toda à noite, ouvi o tilintar da chuva no telhado, levantei, fui até a janela e senti o cheiro de terra molhada, que me trouxe a lembrança das férias da infância no sítio do meu avô. O sítio era pequeno, não tinha energia elétrica, nem água encanada, o chão da casa era de terra batida, mas lá, cabiam todos os sonhos do meu coração de menina.
Nas festas juninas, nos reuníamos em volta da fogueira, no terreiro, em frente a casa, que meu avô chamava de quintal. O milho, que eu mesma colhia, assava com as bonecas — espigas que não vingavam, mas ostentavam cabelos de todas as cores. Enquanto esperávamos, o baião de Luiz tocava a todo volume no rádio de pilha, que meu avô pendurava com um barbante no telhado da casa, para sintonizar melhor a estação. Ele, que sempre tinha uma boa história para contar, estava sempre feliz, um piadista, e recorrentemente inventava coisas para nos divertir.
Sempre, sempre, pelas manhãs, levávamos o gado para pastar, durante o longo percurso, lembrávamos de nos proteger das cercas de avelós, que serviam para impedir a boiada de desviar do caminho. A planta continha uma espécie de leite que, em contato com os olhos, cegava. Nunca compreendi como o gado entendia isso, mas funcionava.
Enquanto os bois pastavam, tomávamos banho de açude. A água barrenta, deixava meu cabelo acinzentado e inflexível, e isso só era resolvido no final das férias, quando voltava para casa, para os banhos de chuveiro e com água cheirando a cloro.
De volta ao sítio, banho de cuia com sabão amarelo, para nos livrar dos germes — segundo meu avô também, um grande entendedor dos mistérios da vida. Lembro, que ele mesmo extraía seus dentes com um facão, que era aquecido no fogão à lenha para esterilizar, usava a cachaça como anestesia e estancava o sangue com açúcar. Ele tinha uma saúde de ferro, como costumava falar, se alimentava do que plantava, dos ovos das galinhas que criava, do leite que suas vacas produziam, que era ordenhado direto nas canecas de alumínio, saía quentinho, espumando, uma delícia!.
Do meu avô, ganhei meu primeiro cãozinho. Em casa, era proibido — assunto encerrado. Mas no sítio, quase tudo era possível. Tourinho, um filhote vira-lata, seguia meu avô quando ele retornava da feira e comia tudo que cruzasse seu caminho, sandálias, roupas, revistas, nada podia ficar ao seu alcance. Ainda assim, nos divertíamos muito, mas nossa amizade só durou essas férias. No ano seguinte já o encontrei tão grande e ameaçador, que não tive coragem de me aproximar para descobrir o que seria capaz de abocanhar.
Tratei de arrumar uma nova distração, apanhar os ovos das galinhas, bem mais dóceis e mais fáceis de lhe dar. Entrava no galinheiro pé ante pé, para não assustá-las, com mãos de luva, ia colocando os ovos, ainda quentinhos e sujos, em uma cesta de vime, até que ela estivesse completamente cheia. Em casa, lavava um a um, com muita delicadeza e os organizava em bandejas de papelão de cor púrpura. Eram vendidos para feirantes da região. O leite também era vendido, mas para uma fábrica de leite em pó. Meu avô tinha leiteiras enormes de alumínio, e uma vez por semana, um caminhão da fábrica passava para buscar o leite. As três leiteiras cheias eram trocadas por três vazias, com o pagamento da semana, que cabia a mim conferir. Pelo trabalho, eu recebia algumas moedas de gorjeta. As gorjetas eram tantas, que resolvi comprar um porta-níquel e comecei a juntá-las para comprar um brinquedo. Levava comigo para onde quer que fosse e, quando já estava bem cheia, certo dia, durante um passeio no zoológico, sentei-me em um banco para lanchar e, distraída, esqueci meu porta-níquel ali. Passei dias remoendo, como pude ser tão distraída e em poucos segundos, perder todo dinheiro que levara tanto tempo para juntar.
Agora não guardava mais nenhum centavo, tudo que ganhava, gastava com guloseimas, até começar a ter novas paixões, estava crescendo e os interesses agora eram outros, não esperava mais com ansiedade as férias no sítio. O desejo de reencontro com as vacas e galinhas da minha infância foram sendo substituídos pelos livros, cinema e LPs e novos amigos, da escola, do bairro, da faculdade, amigos dos amigos… e, o sítio passou a ser doce lembrança, com cheiro de terra molhada e gosto de umbu. E meu avô, terá para sempre um lugar quentinho no meu coração.