Sacilotto, Sacigiotto e o Saciloco | Crônica de Luiz Henrique Gurgel

 por Luiz Henrique Gurgel__


Sacilotto


Há quem diga que o povão, em geral, gosta mesmo é de pintura realista, quando o artista faz o desenho idêntico ao modelo, à paisagem, quase fotografia. Sempre desconfiei dessa conversa. Agora soube da história de um menino de 11 anos, nascido e criado na quebrada do Morro do Kibon, lá em Santo André, no ABC Paulista, que prova que as coisas não são bem assim.


Não sei o nome dele, vou chamá-lo de Luquinha. Sei que ele teve um verdadeiro avivamento ao bater os olhos numas tiras grandes, dobradas, verde e laranja, que saíam de um paredão e lembravam o fole da sanfona do avô. Detalhe: essas tiras eram pintadas, chapadas na parede e paralisaram o irrequieto menino. Assim me contaram.


O alumbramento se deu numa excursão da escola para um parque chamado Sabina. Luquinha estancou de repente, logo na entrada, diante do enorme painel geometricamente colorido. Embasbacado, olhos percorrendo acima e abaixo da pintura: aquilo era dobrado de verdade ou era enganação? Parecia o papel crepom colorido que a Prô Carina tinha dado para a turma trabalhar em aula no dia anterior. A ilusão do volume, o triângulo, o plano, o reto, a ponta, a luz, a sombra, o dobrado, tudo radiante e pulsando aos olhos do menino, que chegava perto da parede, depois se afastava, ria sozinho e conferia todo aquele movimento incrivelmente estático. Luquinha jamais tinha visto nada parecido.


A professora foi buscá-lo, tinha outras coisas para ver no parque: a sala dos dinossauros, a máquina em que se põe a mão e o cabelo se ergue arrepiado, como se tivesse visto assombração. Mas o assombro do menino estava ali na frente dele.


- Como chama o homem que fez, Prô?


- Sacilotto, Luiz Sacilotto.


- Que louco, Prô. Como ele pintou esses triângulos e essas faixas pra ficarem assim? Muito louco, parece que vai, mas não vai, que encolhe e estica, que dobra e desdobra, uma parte tá na sombra e a outra, não. Esse Saciloco era muito louco, Prô.


Luquinha nem ouviu quando a professora corrigiu o nome do artista, “é Sacilotto!”. Ele já imaginava o seu Saciloco, sem gorro, com duas pernas e boné virado para trás, voando numa moto a fazer piruetas iguais àquele zigue-zague retinho do paredão. Também não entendeu o nome da obra: Concreção 0253. Que nome esquisito. O que cimento tem a ver com isso?


Só crianças, loucos e filósofos estão abertos ao espanto, tudo pode conter surpresa. Enxergam o que os outros raramente percebem. O mundo nunca é o mesmo.


Certamente, o sisudo Sacilotto ia ficar feliz com o admirado Luquinha. Um dos maiores artistas do concretismo brasileiro, com trabalhos expostos em museus pelo mundo, faria 100 anos em 2024. Dizia que a arte concreta era como um alfabeto a ser compartilhado pedagogicamente com todos. Está aí o Luquinha de prova. Dizem até que Sacilotto promoveu uma revolução visual semelhante à do Renascimento. Não à toa o poeta e teórico do concretismo, Décio Pignatari, o chamava de Sacigiotto, fazendo trocadilho com um dos maiores pintores do Renascimento italiano. Giotto também foi um dos pioneiros “na introdução do espaço tridimensional na pintura europeia”.


Sacilotto está sendo homenageado em exposições especiais no Museu de Arte Contemporânea da USP, em São Paulo, além de duas em sua terra natal, Santo André, num espaço cultural que leva o seu nome e outra no SESC da cidade.


Não sei se é verdade, mas dizem que os muros esburacados do Morro do Kibon não são mais os mesmos. Vivem cheios de grafites geométricos com triângulos, dobras, quadrados, ondas coloridas retilíneas e precisas. O espanto tem tomado conta do morro, ninguém sabe dizer quem anda fazendo aquilo.




Luiz Henrique Gurgel 
é jornalista, professor e pesquisador. Mestre em Literatura Brasileira pela USP, é autor do livro de contos "amores malfadados" (Ed. Primata, 2020) e "Porque era ele, porque era eu e outras quase histórias" (Caravana Editorial, 2023)