por Raphael Cerqueira Silva__
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Foto de Jr Korpa na Unsplash |
O relógio marca vinte e uma e vinte e seis. Não queria chegar num horário desses, mas o Pássaro Verde, como se não bastasse atrasar mais de uma hora no embarque, enguiçou no caminho… Agora, finalmente, adentro o 707; pé ante pé para não acordar Narciso, o matusalém. Que, a essa altura, já papou sua sopinha de aveia, bebericou seu cafezinho, se entregou aos braços de Morfeu.
Gosto dos encontros sindicais — ganho folgas, ouço estórias, aprendo um pouquinho – o busílis, porém, está em dividir quarto com desconhecidos. Assim mesmo, no plural: nos anos anteriores éramos três viventes a dividir vinte e poucos metros quadrados. Dessa vez, pelo menos, somos dois: eu e o senhor Narciso.
Sob a luz do abajur xexelento, vejo seus pés. E não são pés de velho: Narciso, para minha surpresa, só é senhor pras formalidades bestas do cara-de-fuinha da recepção. É jovial, juveníssimo o meu companheiro de quarto.
Largo a mala no canto, ajeito os óculos. Sou, agora, um anatomista intrigado com Narciso, que ressona puerilmente. Apesar da penumbra, examino-o: brinco ponto-de-luz na orelha direita; barba de três dias; pingente de olho-grego vigilante sobre o peito desnudo; tatuados em V, pássaros avoam abdômen afora, excitados com aquilo que o lençol esconde; as pernas, não posso examinar: descansam sob o pálio dos sei-lá-quantos fios de algodão.
Algo cai no corredor. Meu companheiro mexe a mão, felizmente não desperta. Prossigo a análise: robustos desenhos geométricos descem do ombro até metade do antebraço. Intrigam-me, as muitas e sinuosas linhas desses desenhos. Houvesse mais luz, talvez pudesse desvendar seus significados: gosto de olhar as tatuagens que frequentemente passam por minha vida, fico imaginando os segredos que contêm. A mão direita, espalmada na cama, revela alguns anéis; não vejo, contudo, a outra: sob um pedaço maldoso do lençol, protege intimidades que desejo escrutinar.
Alguém passa pela porta, as rodinhas da bagagem rilhando apressadas. Narciso vira para a parede. O abajur, que não me parece mais tão xexelento, se apossa rapidamente de suas costas e nádegas. Ele, Narciso, deve ser um neófito nos quadros da burocracia e, por conseguinte, ignora que dividimos quarto nos encontros. Ou sabe e, feito o torso de Mileto, não importa de se expor aos olhares curiosos — não raro cúpidos — dos demais sindicalizados.
Perscruto o companheiro, lembro Rilke: “Pois o belo é apenas o começo do terrível”. Ah, sei bem como é. E, com a advertência do poeta, abandono minhas conjecturas para atender ao chamado da natureza.
Entro no banheiro. Cauteloso, levanto a tampa: ano retrasado o sujeitinho lá da zona da mata vivia deixando presentes. Mas, pelo visto, Narciso não é dado a surpresinhas desagradáveis. Enquanto a urina amarela a louça, leio o bilhetinho sobre a pia, entre os sachês de xampu e condicionador.
Boa tarde: Se as batalhas da vida exigem muito de você, sinta-se feliz, pois Deus só exige muito de quem tem a capacidade de vencer. Deus não escolhe os capacitados, Ele capacita os escolhidos. Com carinho, E.
O último pingo tomba exatamente quando chego ao enigmático “E”. Guardo o bilhetinho na jeans: não creio que Narciso, do alto de sua mocidade desnuda e tatuada, saberá dar valor às gentilezas da missivista.
A qual deus “E” pensava ao redigi-la? O Deus tirânico do Velho Testamento, o Deus ausente do Novo Testamento, um desses deuses que, quando em vez, descem à Terra e repousam em camas de hotéis três estrelas? Penso nisso, enquanto ajeito o travesseiro nas costas.
Se Narciso despertasse neste momento, e acaso fosse leitor de Vinícius, certamente recordaria o verso “Alguém que me espia no meio da noite…”
Madrugada alta, acordo. Baita torcicolo, uma vontade doida de me aliviar. Narciso não está. Esqueceu que a palestra começará às sete e meia? Os sachês, ressentidos por eu ter levado o bilhetinho, me ignoram.
Raphael Cerqueira Silva, é mineiro São Geraldo, servidor público, graduado em Direito e História, e cronista nas revistas Vicejar e Conhece-te. Publicou Confissões, livro de contos, e A Vida Segue, livro de crônicas.