por Taciana Oliveira__
A obra acompanha a trajetória de um homem que, após a morte do pai, abandona a vida urbana e seu trabalho burocrático para se refugiar em um sítio no interior. Movido pelo desejo de reencontrar o sentido da existência, ele se entrega à solidão do campo, à vida simples, ao cultivo da terra e à contemplação da natureza. No entanto, a experiência do isolamento, que a princípio parece curativa, gradualmente revela-se também uma armadilha: a mente do protagonista começa a rachar sob o peso das lembranças, da culpa, da luxúria reprimida e dos fantasmas de sua vida anterior.
O livro é marcado por um uso inventivo da linguagem. Longos parágrafos, por vezes sem pausas ou quebras, transportam o leitor para o interior do fluxo mental do narrador — seus pensamentos, suas obsessões, suas confissões, suas perdas de controle. A sintaxe frequentemente se desdobra em espirais, com ritmo e musicalidade que remetem tanto à oralidade quanto ao transe literário.
Neste movimento, a figura de Eva Podolski emerge como um ponto de ruptura. Camponesa de origem eslava, Eva é a mulher por quem o protagonista se apaixona com força doentia, confundindo-a com a própria terra que tenta cultivar. Eva é desejo, é mito, é tormento: sua presença catalisa a decadência do narrador, revelando o que há de mais primitivo e incontrolável em sua psique.
A natureza, por sua vez, é personagem tão vital quanto qualquer figura humana. As araucárias, os rios, a terra preta, as tempestades, os animais silvestres, o fogão a lenha — tudo ganha vida num texto que funde o homem ao ambiente, numa simbiose ora mágica, ora angustiante. Em diversos momentos, o narrador se vê tomado por visões, epifanias e alucinações que transformam a paisagem em espelho de seu próprio delírio. Há uma espiritualidade animista que passeia pela obra, mas também um desencanto que a torna cortante.
As referências literárias e filosóficas são vastas: Thoreau, Tolstói, London, Kerouac, Bukowski, Emerson, Dostoievski, Quiroga, entre outros, são invocados como guias ou espelhos de um caminho que oscila entre a iluminação e o colapso. O protagonista é ao mesmo tempo, um eremita, um exilado, um vagabundo metafísico e um narcisista falido — e o autor não se furta a mostrar suas contradições com crueza.
Delirium Telúrico Tremens é também um comentário agudo sobre o fracasso da utopia individualista, do retorno à terra como gesto de pureza. Em vez de redenção, o isolamento leva ao colapso. Em vez de regeneração, à alucinação. A busca pela autossuficiência se transforma em espelho das falhas humanas. E a escrita, neste processo, é o único fio que ainda liga o narrador à razão — ainda que uma razão esgarçada, embriagada, estremecida.
Com estilo pulsante e imaginação fértil, Rafael Victor Rosa Oliveira entrega uma obra contundente — dessas que nos colocam ao lado do fogo reconfortante, embalados por sonhos doces nas noites enluaradas de uma existência à beira do abismo. Uma leitura que não poupa o leitor de enfrentar uma escalada a uma montanha enevoada ou aos precipícios da própria consciência.
Trecho:
Fazia exatamente dez anos desde o falecimento de papai naquele dia lúgubre em que vi no seu rosto dramático de morto a mensagem eterna da finitude da existência quando decidi comprar um sítio e me afastar de tudo e de todos pra viver isolado me dedicando à agricultura em busca da iluminação espiritual do vazio — o sonho dos grandes escritores vagabundos iluminados (London, Tolstoi, Thoreau, Quiroga e tantos outros) — E viver com o mínimo possível cultivando o próprio alimento (feliz é o homem que come o que planta) e comercializando o excedente, e todo esse sonho mirabolante gestado inconscientemente ao longo de sucessivos anos de porres existenciais ao lado de intelectuais bêbados vadiando em praças sórdidas ou em mesas de boteco falando de tudo ao mesmo tempo e nada que valesse a pena afinal, no fundo todo mundo se lixando pra porra nenhuma (exibicionismos e deambulações metafísicas) — Mas sabem como é que é, um dia você precisa escolher e dar um jeito na vida ou então nada valeu a pena e não adianta se desculpar dizendo que a liberdade é só um conceito abstrato que não se aplica à realidade — o fatalismo é só mais uma forma de temer — então eu tinha duas opções: ou lançar-me definitivamente no abismo e morrer de cirrose e amargurado e provavelmente louco como um poeta rimbaudiano ensandecido ou buscar a iluminação dos sábios filósofos solitários vivendo isolado na solidão dos bosques — tomo por fim a resolução de pôr em prática meu sonho de infância — a infância intacta de pois de tantos anos de contingências calamitosas — de comprar um pedacinho de chão e fazer crescer nele novas esperanças e motivos pra continuar seguindo em frente.
*Rafael Victor Rosa Oliveira, 35 anos, possui mestrado em Literatura Comparada pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) e é graduado em Direito. Após alguns anos trabalhando como servidor público estadual, decidiu deixar esse caminho, sentindo-se cansado e entediado, e então embarcou em uma jornada em busca de sua verdadeira paixão: a escrita. Atualmente, vive isolado na zona rural de Tijucas do Sul (PR), onde se dedica à agricultura e à criação literária. É autor dos romances A ascensão (Kotter, 2023), Um homem muito respeitado (Caravana, 2024), Delirium Telúrico Tremens (Urutau, 2025).