por Andrea Jundi__
Trecho 01
Benícia era a mais velha de seis irmãos, todos homens. Nasceu na roça, numa casinha de barro e chão de terra batida, em um dia de chuva forte de verão. Nunca mamou no peito porque com três dias de vida a mãe já havia voltado ao trabalho na plantação. Quem cuidou dela foi a avó paterna, que, apesar de jovem e forte para trabalhar, era cega de um olho, e os donos da fazenda deixavam que ela cuidasse dos trabalhos domésticos e da limpeza das raízes colhidas para a venda.
Com quatro anos de idade, Benícia já tinha dois irmãos, ajudava a avó a cuidar deles e a limpar as raízes colhidas pelos pais. Ela sempre contava que a mãe colocou o irmão no colo dela ainda com o umbigo amarrado pelo barbante. A mãe não tinha escolha. Em troca da casa e de poder ter sua própria horta nos fundos do quintal, ela plantava e colhia as raízes do dono da fazenda, fizesse chuva ou sol, trabalho que ela realizava com o marido, o pai de Benícia, e com outras famílias que moravam na fazenda nas mesmas condições que eles.
Quando Benícia completou dez anos, já tinha os cinco irmãos nascidos. No último parto, a mãe quase morreu de tanto sangrar e a avó falou que ela havia perdido metade das entranhas. Mas ela sobreviveu e se livrou do fardo de passar o resto da vida grávida. Já Benícia, decidiu ainda criança que não queria ter filhos, queria ir à escola e brincar. Sentia que já havia cumprido seu papel de mãe por tempo demais. Queria correr, jogar bola, comer fruta do pé e aprender a ler. A avó pedia que não falasse essas coisas na frente do pai, que a pegaria de jeito, e ela obedecia resignada.
Trecho 02
Só havia entrado uma vez na loja com a mãe quando ainda era pequeno. O que mais o marcou na ocasião foi o cheiro de livros novos e o som da madeira que rangia sob seus pés quando andava, fazendo o velho livreiro o acompanhar de canto de olho aonde quer que fosse e o menino tentar pisar bem leve para parar o ruído e poder olhar as prateleiras sem se sentir vigiado. Carlos se lembrou de ter pedido para a mãe comprar um livro, mas ele ainda nem sabia ler, que serventia teria um livro, ela disse. E jurou que compraria quando ele aprendesse. Foi essa promessa da mãe que o fez querer aprender rápido a ler, e quando entrou no primeiro ano da escola, era o único da sala que já sabia.
Cumprindo então a promessa que ele nunca esqueceu, Benícia lhe comprou dois livros infantis e desde então eram os únicos que ele tinha. Um era em quadrinhos, sobre um menino e seu cachorro super-herói, e Carlos pequeno sempre gostava de ler antes de dormir na esperança de sonhar que também era um super-herói. Nunca conseguiu. O outro livro era um diário de dois amigos, um menino e uma menina, que escreviam sobre as aventuras que faziam em muitas viagens pelo mundo, colavam fotografias e faziam desenhos para ilustrar. Este deu a Carlos a ideia de também escrever um diário, e assim começou ainda com sete anos, um pouco antes de a mãe partir.
Agora no depósito, olhou em volta. No teto apenas uma lâmpada apagada pendurada pelo fio de eletricidade. A poeira suspensa no ar iluminada pela fraca luz do dia que entrava pela janela alta, aliada ao silêncio quase total, reverberou em Carlos uma sensação de sonho. Parecia aquele momento em que ocorre uma pequena pausa entre a inspiração e a expiração. Era isso. Ele achava que o mundo havia parado para recuperar o fôlego e se sentiu quente por dentro, sortudo mesmo por ter caído justo ali.
Andrea Jundi nasceu no Rio de Janeiro em 1983, mas cresceu em São Paulo. Em 2005, com 22 anos, formou-se em Comunicação pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). Já inserida no mercado de trabalho do audiovisual, mudou-se em 2011 para Londres, Inglaterra, para estudar criação e desenvolvimento de roteiro. De volta ao Brasil, atuou profissionalmente como Assistente de Direção em algumas das maiores produtoras do mercado audiovisual como O2 Filmes, Conspiração Filmes, Mixer e Domo. Estreia na literatura com "O menino e o livreiro", publicada pela Editora E-Galáxia.