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Com o tempo recortado nas areias soltas húmidas | Manoel T. R.- Leal

 por Manoel Tavares Rodrigues-Leal__



Dactiloscrito do poema I (1976). Num telegrama para Ana Maria Gavina na fase de ruptura conjugal


Quatro poemas inéditos (1966, 1968, 1976), escritos em quatro suportes diferentes.

Was bleibet aber, stiften die Dichter. (Mas o que perdura, fundam-no os poetas.)

Friedrich Hölderlin

Le poème est l’amour réalisé du désir demeuré désir. (O poema é o amor realizado do desejo mantido desejo.)

René Char — inscrição no caderno O Uso do Cio (1992) de M. T. R.-Leal 



em vão busquei teu perfil de poeta na brisa

e teu nome no mar profundo

jazia tudo abandonado na tua loira infância


Lx. 16-9-76



Manuscrito do poema I (1976). Redigido na página do caderno Fragmentos de um Livro Dividido (Anónimo do Séc. XX)



II

noites sós

com olhos de álcool

e ventre

lúcido de loucura


com o tempo recortado

nas areias soltas

            húmidas

            abandonadas

dos corpos nus

nos silêncios inválidos


noite exacta

com o rigor de inquietude

e a sede perfeita

da concepção mais pura


Lx. 20/1/66


III

até que se ate a tarde

o torpor atropela o corpo dedos repelidos

aquilatam a eternidade da tarde nua


em tranquilidade se atraiçoa quem perdida praia transparece

e em nudez nódoa tropeça noite amplia


Lx. 20/10/69


IV

substantivo


alabastro

labirinto

lábios

alarme beliscado


brancura de lábios

arames de mar

alastra

elaboram lábios

barcos


alabastro


Lx. 5/10/68




Manuscritos dos poemas II (1966), III e IV (1968). Respectivamente: folha separada de um pequeno bloco pautado; folha separada de um bloco médio pautado; folha separada de um bloco médio não pautado.


Artigo recente na Caliban com poemas em suportes diversos:

sorvi teu corpo com sílabas de cal — Quatro poemas inéditos de M. T. R.-Leal – Caliban – 15/7/2025

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*Poemas coligidos por Luís de Barreiros Tavares



Manoel Tavares Rodrigues-Leal (Lisboa, 1941–2016) foi aluno das Faculdades de Direito de Lisboa e de Coimbra, frequentando até ao 5.º e último ano, mas não concluindo. Em jovem conviveu com Herberto Helder no café Monte Carlo frequentando com ele “as festas meio clandestinas, as parties de Lisboa dos anos 60 e princípios de 70”. Nesses anos conviveu também com Gastão Cruz, Maria Velho da Costa, José Sebag, entre outros. Trabalhou na Biblioteca Nacional como “Auxiliar de Armazém de Biblioteconomia”. “A minha chefe deixava-me sair mais cedo para acabar o meu primeiro livro”, A Duração da Eternidade (2007). Publicou cinco livros de poesia de edição de autor. As suas últimas semanas de vida foram terrivelmente trágicas. Caído no quarto, morrendo absolutamente só no Natal e passagem do Ano 2015–2016.