Trecho do capítulo 1, pág. 17
“Pela terceira vez desde que havia se sentado, o reservatório de urina vazou. Marina já estava acostumada. Sempre que ia trabalhar, esquecia-se de esvaziar o reservatório. O fato é que se ela usasse a bolsa apenas o número de vezes recomendado, isso não aconteceria, mas aquela era uma forma de economizar dinheiro e Marina precisava economizar.
Suspirando, a menina de 24 anos se levantou e foi até o banheiro. Sentou-se no vaso sanitário, tirou a sonda vesical e esvaziou a bolsa coletora no vaso. Limpou-se e deu descarga. Voltou à sua escrivaninha, pegou uns lenços umedecidos na gaveta e limpou a cadeira onde sentava para trabalhar.
Afastou um pouco o calendário de mesa analógico que ocultava sua bateria vital e olhou por curiosidade. Menos de vinte por cento. A luz vermelha indicava que já era hora de parar, mas Marina não podia. Tampou novamente a bateria e voltou ao banheiro para lavar o rosto. Há quantos dias mesmo estava naquilo? Já não se lembrava mais.
Voltou à escrivaninha. Olhou sua cafeteira elétrica e lembrou--se de que não havia colocado o pó. Abriu o pote onde o guardava e descobriu-o vazio. Suspirou. Se jogar o pote na parede pudesse fazer surgir mais café, ela o teria jogado. Mas não. Precisava do pote e, também, de mais café.
Foi até a cozinha do apartamento, onde quase nunca pisava, e procurou nos armários. Nada. Droga! Resmungando, abriu o aplicativo de compras rápidas on-line e colocou café em seu carrinho. (...) ”
Trecho do capítulo 31, pág. 104
“Kaue descobriu o maravilhoso mundo das pílulas. Existiam pílulas para tudo e qualquer coisa: emagrecer, engordar, dormir, acordar, sonhar, não sonhar, ser mais produtivo, enfim, qualquer coisa era possível para esta indústria das pílulas.
Inicialmente, o homem achou que seria uma boa ideia tomar pílulas para permanecer acordado, mas lembrou-se de Marina e seu battery-out e repensou sua escolha. Talvez fosse melhor dormir e não sonhar. Assim, não havia o risco de ele entrar no inconsciente da mulher.
Resolveu comprar as tais pílulas para não sonhar, mas assim que ele o fez, o vendedor avisou: ‘Cuidado, que seu relógio vital vai durar menos’. Kaue não entendeu, e mandou mensagem para o vendedor perguntando o que aquilo significava, ao que ele respondeu: ‘Significa que vai ter que dormir mais para compensar’.”
Dormir mais? Não era exatamente o que Kaue não queria? Mas o vendedor explicou que um sono sem sonhos não era tão reparador quanto um sono com sonhos, por isso, o homem teria que dormir por mais horas.
Kaue ficou frustrado. Ele já havia passado quinze anos em um leito de hospital, e agora ainda teria que dormir por mais horas? Já estava atrasado para a vida, não havia tempo a perder. No entanto, o medo de rever Marina era maior que sua sensação de atraso.
Aceitou as condições das pílulas para não sonhar e começou seu uso.
Realmente, as pílulas funcionavam. Kaue estava com medo de que fossem placebo, mas ele não sonhou mais. Era estranho, mas ele acordava igualmente cansado, como se não tivesse dormido o suficiente. Seu próprio relógio vital não carregava até os cem por cento.”
Veronica Yamada é médica oftalmologista, escritora e editora. É millenial, nasceu e mora em São Paulo com seus muitos pets. Escreve principalmente horror e distopias, pois deseja que seus livros furem bolhas. Ganhou o Prêmio Talentos Helvéticos em 2023 e Carne de segunda se tornou um best-seller da Amazon. Em “Tempos amarelos”, sua primeira obra de healing fiction, apresenta uma protagonista nipo-brasileira em um futuro próximo, adoecida pela intensificação de uma cultura de trabalho que conduz à desumanização.
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