Entrevista com Léo Cardon, autor de Heresias Lacanianas

por Laura Redfern Navarro |

 


Entrevista com Léo Cardon, autor de Heresias Lacanianas

A coragem para reinterpretar um mestre e a escolha de um caminho intelectual próprio são os fundamentos de qualquer avanço teórico. Na psicanálise, essa jornada muitas vezes implica em romper com dogmas para resgatar a complexidade original de um pensamento. Neste contexto, o psicanalista Léo Cardon lança a obra “Heresias Lacanianas”, um conjunto de ensaios que explora a evolução de Jacques Lacan, que iniciou seu ensino apontando as “heresias” (más interpretações) da obra de Freud e o terminou como um “herege”, inovando e se distanciando do pensamento original para aprofundá-lo.

Nos ensaios reunidos no livro, o autor apresenta textos de diferentes fases de sua própria carreira, espelhando a trajetória de Lacan e convidando o leitor a acompanhar essa evolução. A obra aborda temas cruciais como a desconstrução do método tradicional de formação de analistas, a profunda conexão entre a psicanálise e a literatura — notadamente através da obra de James Joyce — e a importância das figuras matemáticas e topológicas na prática clínica. O livro se propõe a ser um guia para quem deseja navegar pela complexidade do pensamento lacaniano sem receios.

Léo Cardon formou-se em medicina pela Universidade Federal do Paraná em 1975 e, desde 1978, frequenta associações psicanalíticas lacanianas em Buenos Aires e Paris. É membro da Asociación Psicoanalítica Argentina e da International Association of Psychoanalysis desde 1981. Além de sua longa trajetória clínica, Cardon é membro-fundador do grupo Dedica (Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente), consolidando uma carreira que une o rigor teórico à prática social.

 

 1. Por que “heresia” lacaniana? Por que partir deste lugar, geralmente visto tão negativamente?

O uso do termo “heresia” se dá pelo seu valor de “escolha”. Quando se lê um texto, seja ele sagrado ou laico, o sentido é dado pela convicção ideológica. A acepção é positiva, pois neste caso leva a consequências, embora já não mais à fogueira inquisitorial. Lacan começa seu ensino oficial em 1953 apontando às más traduções da obra de Freud, o que levou à dificuldades de compreensão da teoria psicanalítica dele oriunda. Começa, pois, apontando às heresias alheias, que provocaram desvios da prática analítica.

E termina os últimos anos de seu ensino em 1972/1980 sendo ele mesmo, Lacan, o “herege”, trazendo inovações importantes a partir de suas maneiras de entender sua prática, se distanciando do mestre.

 2. Como você reuniu as produções que integram a obra?

Da mesma forma, minhas primeiras contribuições (papers) em 1975 seguiam o ensino inicial de Lacan, com os textos aos quais tínhamos acesso na época. O acompanhamento de sua evolução não poderia ter outra consequência que a nossa própria, em especial porque Jacques Lacan demandava que cada leitor “pusesse do seu”, ou seja, interpretasse com a sua própria compreensão, com o seu momento em relação aos conceitos e experiência.

Isto faz com que em Heresias lacanianas textos mais elaborados estejam acompanhados de textos mais “primários”.

3. O que você pretende construir — e desconstruir — nos ensaios de “Heresias Lacanianas”?

Os textos que foram incluídos como “heresias” implicam na maneira em que Lacan modifica a forma de formar analistas. É a partir de 1964, quando cria sua própria instituição, que pode fazê-lo. Estas modificações acompanham sua evolução teórica. É Lacan que constrói uma nova forma de ensino desconstruindo a anterior, que apesar de ter sido criada por Freud, foi usada para impedir qualquer nova compreensão.

 4. Como você maneja a ponte entre psicanálise e literatura, notadamente através de Joyce? Qual é a provocação central?

Dante desce ao inferno tomando a mão de Virgílio. Lacan desce ao inferno tomando inicialmente a mão de Freud. A epígrafe do livro de Freud A interpretação dos sonhos, de 1899, é da Eneida: “Se não posso mover os deuses superiores, moverei os do inferno”. A relação da psicanálise com a literatura foi inicialmente da admiração pela antecipação que os poetas e criadores demonstram nas leituras das paixões humanas, passando então ao descobrimento de que estas leituras eram inconscientes, fora dos domínios da consciência.

Ao se aproximar do período final de seu ensino, Lacan toma a mão de Joyce, que progressivamente vai se dedicando à letra das palavras, juntando línguas e produzindo mudanças de sentido com uma simples troca letrina. Lacan diz que as letras aí brilham, cintilam, impedindo a leitura da sua forma anterior. Se escrevo “caosmos” o cosmo me aparecerá sem a harmonia que se supunha antes.

De Lewis Carroll a James Joyce, e daí ao conceito lacaniano de “intradução”, ou seja, do uso das línguas conhecidas pelo analisante, que preenche assim o vazio do inconsciente censurado.

 5. O que você busca suscitar nos leitores?

O desejo de que acompanhem a evolução teórica de Lacan, de que não tenham medo das figuras matemáticas e topológicas que o autor utiliza progressivamente, o que devolve à clínica a complexidade que merece.

 

 


Léo Cardon formou-se em medicina pela Universidade Federal do Paraná em 1975 e, desde 1978, frequenta associações psicanalíticas lacanianas em Buenos Aires e Paris. É membro da Asociación Psicoanalítica Argentina e da International Association of Psychoanalysis desde 1981. Além de sua longa trajetória clínica, Cardon é membro-fundador do grupo Dedica (Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente), consolidando uma carreira que une o rigor teórico à prática social.

 

 

*Laura Redfern Navarro (2000) é poeta, jornalista e pesquisadora.