Descasque & Veja, de Ikaro Maxx — antologia ao avesso, livro-experiência

 por Taciana Oliveira | 


Descasque & Veja, de Ikaro Maxx — antologia ao avesso, livro-experiência

“Descasque & Veja” (Provokeativa, Selo Neomarginal, 2025) é menos um volume de poemas e mais um dispositivo de risco: um livro-experiência para sentir na pele. Ao reunir “fragmentos (extra-anti) poéticos” escritos entre 1999 e 2025, Ikaro Maxx arma uma antologia ao avesso: metamórfica, remixável, declaradamente incompleta. O próprio “Aviso ao leitor” desmonta a expectativa de totalidade e sinaliza a ética do work-in-progress: seções são suprimidas, reescritas, aumentadas; a ordem não é linear; a leitura é convocada como performance — interrompa, anote, rasgue, goze. Essa chave performática orienta toda a experiência. Maxx escreve tal qual quem vive no limite entre página e rua, poema e ato — uma linhagem que passa por Breton, Artaud, Ginsberg e pelos circuitos de Claudio Willer, assumindo cut-ups, escrita automática, colagens, manifestos, “orações dionisíacas”. O livro faz “da vida canibal uma arte despudorada”: erotismo e política não são temas, são procedimentos.

A peça-pivô “o saque de Eros” resume o gesto: “A cópula nas ruas será o meu melhor poema”. Amor aqui é vetor de insubordinação, desmercantilização do desejo, contraponto à “comodidade burguesa” e ao “cristianismo neopuritano”. O erotismo aparece como potência revolucionária, um desarranjo do tempo disciplinado, do trabalho como senhorio, da família guardiã do “bom comportamento”. O texto acopla declarações (“O Amor é já a Vida reinventada”) a imagens vulcânicas e rítmicas, onde o léxico explode em hibridismos (“amor-vulcão”, “paixão kanibal”). Não há pudor nem modéstia de dicção: o excesso é método. Em “Séculos selvagens na sarjeta de vidro”, a poética da errância e do esgotamento materializa uma cidade-máquina e seus destroços: sapatos furados, “charco putrefato”, “tecnologia da derrota”. O eu lírico atravessa a precariedade (pandemia, nomadismo, desencaixe econômico) e insiste na única engenharia possível: inventar pés e asas com o amor. Há fúria contra o complexo bélico-financeiro-religioso e contra a estetização da guerra; ao mesmo tempo, uma sensibilidade concreta para o mínimo (o cão sentado “como um deus esquecido” sobre a tampa de esgoto). A crítica social não vem em tese, vem em cena.

“Ovnis-Óvulos” reencaixa o livro numa órbita beat: libertar palavras, contaminar forma com improviso e trance, erotizar a sintaxe. O poema reivindica o delírio como método e pratica um inventário feroz de imagens — “escadas de cocaína revelando o orvalho nos olhos de Lázaro” — que, mais do que chocar, desprogramam o leitor. O alvo é claro: o “Deu$-Mercado”, o “mundo plenamente administrado”, a captura algorítmica do afeto. O antídoto? Encontros verdadeiros, “férias universais”, sabotáge lúdica do tédio. Não por acaso, o livro traz seções-artifício como “manual de sabotagem artística do tédio cotidiano” e “recuso-me: um manifesto”, que funcionam como gramática de insubmissão.

A seção “Lúdicos ternos em chamas” aproxima a escrita da atuação pública: silêncio tenso, uivo, mesa derrubada, corpo em cena; a página tenta morder como esses gestos. O autor reafirma-se “provocateur” que recusa a domesticação editorial e o culto de ego; no entanto, seu eu é onipresente — um “corpo-manifesto” que se oferece como superfície de inscrição de outros corpos, amores, revoltas. Se há risco aqui, é o do narcisismo do excesso; mas a própria escrita o tematiza e o combate (“narcisonsumismo”), abrindo brechas de ironia e autocrítica. O conjunto alterna blocos visionários com declarações programáticas, listas, slogans (“TORNE A POESIA PERIGOSA PARA O STATUS QUO NOVAMENTE”). O resultado é uma cartografia de intensidades, mais do que um mapa coerente de “obras completas”. Para alguns leitores, a avalanche imagética poderá soar repetitiva ou saturada; para outros, é precisamente no transbordamento que o livro encontra sua ética: “livro para ser vivido”. A taxa de invenção verbal é alta, a musicalidade sustenta a maratona, e quando falha, a energia performativa reativa o circuito.

Os posfácios e depoimentos críticos reforçam a imagem de um poeta em estado de insurreição contínua — “figura serpenteante entre o real e o absurdo do real”, “corpo que derrama pólvora” — e cumprem papel de acolhimento para leitores menos iniciados nessa tradição. Ainda assim, Maxx não facilita: exige repertório e disposição para errar com ele. Em suma, “Descasque & Veja” é arquivo e explosão, caderno de campo e manual de sabotagem. Um livro para quem busca poesia como risco, não ornamento; política como prática sensível, não panfleto; erotismo como invenção de mundo, não consumo. Abrir suas páginas é aceitar a regra do jogo: “Navegue como quem devora… Permita-se errar, sangrar, rir, gozar. Sobretudo, brincar.” Quem entrar, que aceite sair outro.


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Poemas de Descasque & Veja


qual parte

da minha arte

te arde?


aquela

que sussurra

mentiras?


ou a que

berra

a verdade?


__


IkaRo MaxX

suprimiu

a Arte

para realizar

a Vida


chorem

o cadáver

da ilusão,

artistas


Maio de 68

é infinitamente

pequena

diante da rebelião

que quero

aprontar


chorem

críticos & historiadores

eu não preciso

de sofismas

para me explicar


psicografado por Tyler Durden


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Lábios de cisnes & pradarias

aos quais mergulho com a alegria

de um faminto andarilho das estrelas

alquimista de esquinas & orgias

escafandrista de acasos acesos

em volta dos oceanos aquecidos

no magma dos corações alucinados & banidos

com os pés em fúria

danço tango com os escândalos

esquartejadas síncopes de pelúcia




*Na sexta-feira (26/09), das 9h às 11h, acontece o lançamento de Descasque & Veja dentro da programação da FLIMI – Festival.


 


Ikaro Maxx — Cosmopolita desenraizado. Viajante libertário apaixonado pela vida. Poeta-mago com alma de punk.



Taciana Oliveira — Natural de Recife–PE, Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua em direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector — A Descoberta do Mundo”. Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.