Partículas de palavras – partículas poéticas II | Manoel T. R.- Leal

 por Manoel Tavares Rodrigues-Leal | 




“lucidez de estar só” — manuscrito do fragmento-poema IX


*

“O relâmpago dirige todas as coisas” [τὰ δὲ πάντα οἰακίζει κεραυνός] | Heraclito, fr. 64                 

“Os cacos da vida, colados, formam uma estranha xícara.” | Carlos Drummond de Andrade (inscrição no caderno Mar de Ausência, 1980, por M.T.R.-Leal)


Nove fragmentos poéticos inéditos de Manoel T. R.-Leal. 


Nota introdutória

Com o título “partículas de palavras — partículas poéticas” constitui-se um pequeno grupo de publicações. Esta é a segunda. Trata-se de um conjunto de versos, de frases e palavras soltas na sua dispersão. Perdidos, abandonados, como inícios de poemas, incompletos, preparando outros, ou recusados como possíveis inícios dos mesmos (“para completar, se necessário”, escreve algures M. T. R.-Leal, junto a um fragmento já rasurado). Distribuem-se em folhas soltas (1959, 1961, 1964, 1966, 1990) e em quatro cadernos (Significado de ausência (1967), Ensaio de ausência I (1967), um caderno com vários títulos (1967) e um outro sem título (1971).

A sua beleza poética deve-se também à brevidade, ao seu carácter fragmentário, marginal e à sua indigência desértica no espaço dos cadernos (“… e para quê poetas em tempo de indigência…?” Hölderlin). Todas estas pequenas peças verbais apresentam-se bem rasuradas, rasuradas e apenas riscadas. Umas vezes quase ilegíveis. Na hesitação, negação ou quase negação da sua legibilidade. Todavia, M. T. R.-Leal quase nunca rasurava totalmente ao ponto de eliminar qualquer possibilidade de recuperação legível desses minúsculos ensaios ou experiências. Havia uma réstia de leitura. Salvo quando os recusava em absoluto. Há uma surpresa do leitor quando este se depara com uma ou mais palavras totalmente rasuradas. É também o mistério da palavra quando esta nos escapa. Aparecendo ou desaparecendo, a palavra faz… não foi isto o que nos indicou o inconsciente?

Nestes breves segmentos de escrita releva a interrupção. Ela por vezes surpreende, abrindo um impasse ou suspensão da palavra (“vedando lentamente / sol a prumo / nos”). É a experiência do tempo do acto de escrita. Suspensões da palavra que nos fazem deter na mesma, pensá-la e pensar. É o efeito repentino da sintaxe. Ou melhor, o efeito do breve jogo das — e não de — palavras. É o trabalho do poetar-pensar. Escutemos Alain Badiou (Que pense le poème?, Nous, 2016):

“O poema é afirmação e deleitação, ele não vai através [i.e., não segue a dianoia — a discursividade em Platão], ele detém-se no limiar. O poema não é um franqueamento regulado, mas oferenda, proposição sem lei [nomos].”

Naquelas peças solitárias, “partículas de palavras — partículas poéticas”, relevam as letras, também elas partículas. Todas elas resíduos ou sementes por cultivar, ao ar, mas belas na sua ex-posição frágil e esquecimento. Ou como flores isoladas e solitárias no seu colorido numa calçada.

Embora sem o chamamento contemplativo da natureza, elas parecem respirar, por vezes, na sua simples estrutura, o Haiku japonês: “é o silêncio frase por frase / _____ exalação quase / equação sem desgaste”. Mas o que mais delas decorre talvez seja uma experiência micropoética, abrindo-se e mantendo-se o campo possível da micropoesia (“lucidez de estar só”; “equilíbrio de ar”). O nosso trabalho aqui é também o cuidado de decifração (por vezes à lupa e com foco de luz), de pesquisa e de construção gráfica na sua possível beleza.


*

I

tudo é vácuo, em meu torno:

as gentes que perpassam, espantadas,

olham para mim


lx. 5-8-59 – riscado 

*


II

ó meus tempos de criança,

em que sabia tudo e não sabia nada!

meus tempos duma esperança


lx. 19-6-61 – riscado

*


III

a minha

solidão

grita


lx. 29-1-66 – bem rasurado

*


IV

o bastante do corpo

é símbolo pouco

inquérito do dia


27/7/67 — com dois traços em cruz



*


Manuscrito do fragmento-poema IV


V

alcanço a noite eu próprio

num café


fumando o quotidiano cigarro


lx. 29/7/67 — com riscos

*


VI

deste gesto

secreto (?)


lx. 19/9/67 — rasurado

*


VII

vedando lentamente

sol a prumo

nos


lx. 9/67 — com alguns riscos

*


VIII

como reter nos meus dedos a experiência dos corpos


lx. 23/9/67 — com alguns riscos — este verso inicia um poema em prosa na página seguinte

*


IX

lucidez de estar só


lx. 10/67 — bem rasurado



*


“alcanço a noite eu próprio / num café // fumando o quotidiano cigarro” — manuscrito do fragmento-poema V

*

Ligação a “partículas de palavras — partículas poéticas (I)” — na Revista Caliban

clica aqui

*

_________

*Poemas-fragmentos coligidos por Luís de Barreiros Tavares


M. T. R.-Leal (2012) — © L. de B. Tavares



Manoel Tavares Rodrigues-Leal (Lisboa, 1941–2016) foi aluno das Faculdades de Direito de Lisboa e de Coimbra, frequentando até ao 5.º e último ano, mas não concluindo. Em jovem conviveu com Herberto Helder no café Monte Carlo frequentando com ele “as festas meio clandestinas, as parties de Lisboa dos anos 60 e princípios de 70”. Nesses anos conviveu também com Gastão Cruz, Maria Velho da Costa, José Sebag, entre outros. Trabalhou na Biblioteca Nacional como “Auxiliar de Armazém de Biblioteconomia”. “A minha chefe deixava-me sair mais cedo para acabar o meu primeiro livro”, A Duração da Eternidade (2007). Publicou cinco livros de poesia de edição de autor. As suas últimas semanas de vida foram terrivelmente trágicas. Caído no quarto, morrendo absolutamente só no Natal e passagem do Ano 2015–2016.