por Luiz Henrique Gurgel |
Era bom esbarrar com Aracy de Almeida zanzando pelas imediações do antigo Hotel Tropical, onde se hospedava quando vinha a São Paulo, na avenida Cásper Líbero. Ali também ficavam as lojas atacadistas de discos de vinil. Explico aos mais jovens: não se ouvia música em celular naquela época, o tal aparelho nem existia. Era no rádio, nas fitas cassete e principalmente nas “bolachas”, como chamávamos os LPs.
Eu também vendia discos. Não ali, mas na “Galeria do Rock”, em frente ao Paissandu. Apesar disso, a única coisa que sabia de Aracy é que ela era a famosa jurada do programa Sílvio Santos, o predileto de minha avó e do povão. Nem imaginava que ela tinha sido uma das maiores sambistas de todos os tempos e muito menos que era a principal intérprete de Noel Rosa, que eu conhecia por causa de “Com que roupa?”.
A baixinha engraçada era inteligente, rápida nas respostas, irônica, conhecida por seu mau-humor e impaciência com os candidatos e candidatas a cantor ou cantora que apareciam no mais popular programa de calouros da TV. Talvez fizesse tipo, como se diz, talvez estivesse de saco cheio por depender daquela chatice para faturar um troco com o amigo dos tempos do rádio e que ficou milionário. Procure vídeos dela na internet.
No lugar do gongo para eliminar o candidato, havia uma estridente campainha, parecida com aquelas antigas “cigarras” de apartamento, que interrompia o sujeito ou a sujeita que desagradasse algum dos jurados. Normalmente gente simples, empregadas domésticas, pedreiros, vigilantes noturnos, costureiras ou ambulantes que punham os dotes vocais à prova de Aracy e colegas como Pedro de Lara e DécioPiccinini . Quando alguém conseguia chegar até o fim da canção, sem ser interrompido pela “cigarra”, recebia prêmios em dinheiro. O senhor Abravanel, o Sílvio, perguntava quanto valia o show do candidato. A rabugenta jurada, vez ou outra, respondia: “Dá deiz paux pr’esse vigarixta”. Ou, quando gostava, o que era raro, dizia para a pessoa se profissionalizar: “Quem canta de graça é galo, meu filho!”
Só anos mais tarde é que soube — sem a menor ironia — da fidalguia da Dama do Encantado, subúrbio do Rio entre Madureira e Méier, onde, em 1914, essa filha de um ferroviário protestante e de uma dona de casa nasceu e sempre viveu. Ouvinte de Mozart, leitora da Bíblia e de Psicanálise, ela era muito mais que a irreverente figura da TV. Fiquei extasiado ao ouvir suas gravações, sobretudo a primeira e definitiva e mais linda interpretação do samba-canção de Noel, “Último desejo” (corra no YouTube, Spotify ou qualquer traquitana dessas pra ouvir!). Hoje, arrependido daquela minha ignorância, fico pensando como perdi a chance de puxar papo com dona Araca na rua, de repente tomar uma cervejinha com ela, mesmo que na época eu não soubesse nada sobre aquela baixinha que mais parecia um homenzinho velho e ranzinza flanando por ruas sujas. Amargurado feito fã bobo e fora do tempo, só queria agradecer por tudo o que cantou e saudar sua memória e seu espírito deslocado, que imaginava ter sido um cachorro noutra encarnação, tamanho amor tinha por aqueles bichos.
P.S. Bem que eu quis escrever sobre a chacina desta triste quarta, 29/10/25, protagonizada por um nefasto governador, vigarixta da pior estirpe, contra gente ali da Zona Norte do Rio de Janeiro, nem tão longe de onde vivia Aracy. Não consegui. Não há justificativa para tamanho horror, a não ser o regozijo de carniceiros fascistas.
Luiz Henrique Gurgel é jornalista, professor e pesquisador. Mestre em Literatura Brasileira pela USP, é autor do livro de contos “amores malfadados” (Ed. Primata, 2020) e “Porque era ele, porque era eu e outras quase histórias” (Caravana Editorial, 2023).


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