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por Rebeca Gadelha__

Artista: Smile

Horácio veio do Norte com seu irmão, deixou na floresta um outro,perdido à beira de um rio, apenas a espingarda deixada para trás. Na cidade ao lado da capital comprou umas terras num povoado, fez um sítio, casou-se com Chiquita, viveu da terra, dos bichos, teve filhos e filhas — todos os nomes começavam com a letra M . Dizem estes que Horácio ajudou a construir a cidade, hoje nada resta dele além de uns poucos papéis na secretária de planejamento: Horácio é apenas um nome que se perdeu, dentre tantos outros, no meio da história de uma cidade — como tantas outras — que cresceu engolindo gente.


por Rebeca Gadelha__


Artista: kirisawa Juuzou


Isto é o que sei (e não é muito):
Os bisavós teriam fugido para casar, bisavó teria morrido poucos anos depois, “doença” era tudo que vovô dizia; bisavô a seguiu pouco depois, o corpo precipitando-se de encontro à via férrea — se o fim foi proposital ou acidental, isto não o sei, vovô também nunca disse e só agora começo a desconfiar da veracidade desses fatos. Segundo vovô seus pais haviam fugido da Europa para o Brasil, pois os pais de seus pais eram contra o casamento, o que o avô (homem do qual eu nunca soube o nome) de meu avô fazia no Brasil na época da morte de seu filho eu nunca soube, também nunca questionei até este momento. O fato é que meu avô acabou indo morar com o pai de seu pai, um homem duro do qual ele nunca falava o nome. Falava da fome, das surras, das picadas de escorpiões, mas nunca o nome dele. Seus irmãos foram todos desbaratados em uma geografia incerta: alguns ficaram com os tios, outros com os avós maternos e somente um irmão — que tinha exatamente o mesmo nome do pai — juntou-se a ele na infelicidade de ser criado pelo avô paterno. Aos 15 anos meu avô e seu irmão falsificaram documentos e entraram para as forças armadas, era a década de 1940, num estado abandonado por deus e pelo estado como o Ceará, as opções eram poucas: mendicância, crime, tentar a sorte em Fortaleza e, se falhar, cair nas duas primeiras alternativas. Ouvi isso direta ou indiretamente de alguns dos poucos colegas militares que conheci, também ouvi dos filhos de outros, que encontrei por aí: “naquela época era a alternativa mais honrada para não morrer de fome”. Honrada ou não, foi a alternativa que meu avô escolheu, juntou-se à Marinha ainda antes de 1950 e os frágeis laços que tinha com sua família foram se desfazendo. Quando estava no mar — ou antes de viagens que sabia ser longas — depositava todo o ordenado para a esposa e o confiava ao bom senso da mulher, sem nunca saber se realmente voltaria. Já quando nasci, na década de 1990, só lembro de um cartão postal de minha tia-avó, enviado dos Estados Unidos, uma casa coberta de neve em uma rua qualquer, palavras de saudade que não esperavam resposta. Nunca soube muito da família de vovô: havia dois primos padres, um sobrinho era pistoleiro, a irmã perdera o útero para um câncer, outra estava nos EUA (talvez até fosse esta a do câncer), mas vovô nunca realmente se explicava, de forma que ele próprio parecia mais uma lacuna do que homem.

Morreu e hoje não sei nada sobre ele. Sei que me recitava poesia e falava sobre universos alternativos e radiação, falava sobre psicologia e mediunidade (era espírita, creio eu), suas únicas palavras sobre a ditadura eram sempre “entrava gente para nunca mais sair”. me pergunto se teria adiantado inquirir, investigar esses fatos de verdades dilaceradas que vovô sobre si, creio que não. Vovô sabia guardar segredos.

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Rebeca Gadelha nasceu no Rio em agosto de 1992, cresceu em Fortaleza, na companhia dos avós. Geógrafa sem senso de direção, artista digital, é apaixonada por animes, mangás, games e chá gelado. Tem medo de avião e a única coisa que consegue odiar de verdade é fígado. Foi responsável pela diagramação, ilustrações e concepção visual em Balbúrdia, participa da coletânea Paginário, publicada pela Editora Aliás. Atualmente escreve para as revistas do Medium Ensaios sobre a Loucura e Fale com Elas sob o pseudônimo de Jaded.









por Leo Silva__



Fotografia: Eliane Lobato
Fonte  Revista ISTOÉ


Por Rebeca Gadelha__
Artista: Katsuo


por Taciana Oliveira___


Eis o Manifesto Balbúrdia Poética: 80 tiros, composto por 24 poemas escritos por 24 poetas oriundos de diferentes regiões do país. Vozes que reverberam outras milhares de vozes. Mulheres e homens que alimentam o fogo da resistência. O Manifesto nasce como resposta contrária à celebração messiânica da ignorância, ao déjà vu fascista travestido de Ordem e Progresso. Esse é o nosso território: a palavra. Este é o nosso verbo: existir.
E para que não reste nenhuma dúvida sobre o que nos inspira, segue o último texto do educador Paulo Freire:

(…) Se a educação sozinha não transforma a sociedade sem ela tampouco a sociedade muda. Se a nossa opção é progressista, se estamos a favor da vida e não da morte, da equidade e não da injustiça, do direito e não do arbítrio, da convivência com o diferente e não de sua negação, não temos outro caminho senão viver plenamente a nossa opção. Encarná-la, diminuindo assim a distância entre o que dizemos e o que fazemos. Desrespeitando os fracos, enganando os incautos, ofendendo a vida, explorando os outros, discriminando o índio, o negro, a mulher não estarei ajudando meus filhos a ser sérios, justos e amorosos da vida e dos outros.


Participam: Adriane Garcia, Álvaro Santi, André Luiz Pinto da Rocha, Ana Argentina Castro Sales, Aymmar Rodriguéz, Baga Defente, Bell Puã, Cândido Rolim, Casé Lontra Marques, David Alves, Flavia Gomes, Fred Caju, João Gomes, Juliana Meira, Leonardo Antunes, Lisiane Forte, Luiz Carlos Coelho de Oliveira, Luiz Martins da Silva, Norma de Souza Lopes, Renan Peres, Ronald Augusto, Taciana Oliveira, Talles Azigon e Tania Consuelo.

#elenão #balbúrdiapoética #manifesto


Coordenação: Taciana Oliveira
Concepção Visual & Projeto Artístico: Rebeca Gadelha
Conselho Editorial: Ronald Augusto e João Gomes
Agradecimentos: Cleudivan Jânio, Miguel Rude e Carla Vilela
Editora: CJA Edições
Link para download:  One Drive






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Taciana Oliveira é mãe de JP, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.


Um conto de Fernando Ferrone





por João Gomes___

Obra de Leonilson
Nunca me senti tão lembrado, a contragosto dos héteros, por ser o que sou. Junho é o mês LGBTQ, essa sigla que só cresce, arrastando multidões e adere quase tudo pela diversidade em si. Nunca também fui à Paradas, metrópoles, saunas e cinemas pornô. Mas não é por isso que desejo lembrar nossas conquistas, mas há quem ache que uma Parada da Diversidade do Orgulho LGBTQ é apenas um Carnaval fora de época, um golden shower em becos ou mesmo que cirurgia de vasectomia é a causa de ser homossexual.

Não haveria necessidade de uma sigla se as pessoas não gostassem tanto do rótulo, do estar identificado e agrupado para lutar por direitos óbvios. Com a modernidade, depois da Revolução Sexual, não deveríamos estar batendo nisso. Mas como o óbvio é ululante, como sugere Nelson Rodrigues, persistimos em garantir nosso espaço a um preço caro às vezes. Médicos aclamados por sua atuação, como Drauzio Varella, pesquisador do tema HIV/Aids, atenta para a questão biológica citando inclusive a homossexualidade entre animais. Até o Papa Francisco pede que tudo isso seja esclarecido no julgamento final e que não cabe a ninguém julgar no mesmo plano, todos merecem respeito. Mas há quem acuse que toda a cúria é homossexual, as freiras são bissexuais ou lésbicas e tudo é coberto pela manta divina.

Custa pensar como seria se não houvesse esse embate, essa troca de forças, de olhares, de repressões e ataques homofóbicos. É um salve-se quem puder, só deixe que seus amigos saibam, não dê a entender nada para não morrer. Mas tudo é uma questão cultural, do modo de agir e pensar, e biológica do modo natural de desejar. Negar a si mesmo é algo religioso, por isso há os curiosos, os ativos na homossexualidade e negadores da passividade, donos de uma meta corporativa de homofobia que os encubra. Há um pensamento bem verdadeiro que se encaixa a isso: você pode ser gay e não ser homossexual, e homossexual sem ser gay.


por Taciana Oliveira___

No artigo Mito construído II: o desenvolvimento da crônica esportiva brasileira, de Felipe Rodrigues da Costa, o autor pergunta: Teria sido Mario Filho que, trazendo uma nova forma de escrever, um estilo mais simples, sepultou a escrita de fraque dos antigos cronistas esportivos? Seria ele a referência do nascimento da crônica esportiva, incorporando ao gênero, além da nova linguagem, respeitabilidade ao ofício da crônica? 

O jornalista Mario Filho, irmão do dramaturgo Nelson Rodrigues, é pioneiro na criação de textos que promoveram uma aproximação do jogador de futebol com o leitor. Mas é Nelson Rodrigues, autor do célebre A Pátria de Chuteiras, o responsável pela popularização do gênero. O escritor sabia como ninguém transformar em arte literária sua paixão pelo esporte mais popular do país.

O jornalista Alessandro Caldeira recentemente criou o projeto Afinta, um espaço dedicado ao futebol e a crônica esportiva. Nessa edição publicaremos uma crônica e uma pocket entrevista com o autor.

A crônica esportiva é um gênero visitado por figuras célebres como Nelson Rodrigues e Armando Nogueira. Nelson a imortalizou como gênero literário. Fala pra gente dessa sua paixão pelo jornalismo esportivo. Nelson está certo quando afirma que “No futebol, o pior cego é o que só vê a bola.” ?

Eu acho que a minha paixão pelo futebol começou quando eu era criança. Sempre fui muito viciado em futebol, mas sempre preferi jogar. Lembro que eu tinha um jogo de botão e ficava montando campeonatos com representação da realidade. Criava times, jogadores, montava escalações, enfim, em dia de jogo eu não assistia futebol. Eu ouvia no rádio e ia acompanhando enquanto meus times de botão tinham seus campeonatos particulares. Depois que passou a infância e a adolescência, tive uma fase que gostei mais de tática, estatísticas, modelos de jogos e tudo mais.... Só que nunca me sentia verdadeiramente bem com isso, não sentia que a representação do futebol estava nisso porque se perde um pouco a humanidade sentida durante o jogo. A partir daí eu decidi aceitar o que realmente acredito, que é não só ver a bola, como ela vai até os jogadores, mas sim o que os jogadores fazem com ela... Seus comportamentos, seus sentimentos diante da bola.

Afinta é o teu projeto pessoal. Um espaço para quem acredita na capacidade de transformar o futebol em arte. Escrever sobre futebol ainda é um execício afetivo sobre algo que define alma do brasileiro?

Eu acho que o brasileiro tem muito interesse pelo futebol, de falar sobre futebol. Embora esse interesse tenha diminuído por questões afetivas e culturais. Mas vejo ainda assim muitos escrevendo como uma forma de interagir com quem se interessa. Ainda mais hoje em dia que as redes sociais, como o Twitter, permitem se falar sobre qualquer assunto livremente.

O poeta Paulo Emílio Azevedo diz que "Arquibancada de estádio de futebol é igual missa de domingo - um senta e levanta danado esperando Deus marcar um gol pra libertar o delírio" Pra você futebol é uma liturgia, uma celebração?

O brasileiro tem uma conexão muito grande com o futebol. A cultura brasileira permite isso. Não é difícil encontrar um brasileiro que tenha o sonho de ser jogador, e isso se deve muito à nossa formação nas ruas. Normalmente são os meninos ou meninas que saíram de uma família pobre que tem esse desejo. O futebol te permite ser o que quiser. É aonde o brasileiro tem a capacidade de sonhar e transformar em realidade através da bola. Sempre tivemos uma tendência maior em jogar do que assistir futebol. Brasileiro gosta de sentir o jogo na prática. Mas isso mudou com o passar dos anos por estarmos presenciando um choque cultural. Muitos "cientificistas" idolatram o que vem de fora e expulsam o que vem daqui, rotulando como algo simples e pobre. Isso gera um desinteresse, a torcida não se identifica com isso. Eu vejo o futebol como uma celebração. É no campo que o brasileiro se sente livre para ser o que quiser.


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O Drible Interrompido

por Alessandro Caldeira

O interesse desmedido pela vitória deixou o brasileiro alheio à tradição da gestualidade corporal na cultura do País.


Certa vez, numa quadra escolar onde amigos organizavam as “peladas” todas segundas-feiras, o garoto que mais gostava de driblar recebeu uma advertência de seu companheiro de equipe: “Não faça muita firula”. Assim que acabou o jogo, o garoto comentou perto de mim: “Eu não sei jogar bola”, convencido de que seu estilo de jogo era errado.

Ao mesmo instante, senti como se alguém tivesse tirado o sonho daquele garoto, como um mágico limitado na criação de truques menos ilusórios.

No entanto, quem via o pequeno franzino jogar, logo se sentia diferente perto dele. Em outras palavras, era como se o público obtivesse uma nova descoberta quando a bola grudava nos pés daquele garoto. Os comentários de quem o assistia eram os melhores possíveis: “Esse garoto tem talento”. “Não dê muito espaço, senão já viu! ”. “Ele não fica nervoso na frente de marcador algum”.

A expectativa que a “torcida” gerava em cada toque na bola daqueles pés pequenos e magros o transformava em uma “celebridade”, o público notava-o, aquele era o momento em que ele podia interagir com outras pessoas e tornar-se conhecido sem precisar falar, porque é esse o objetivo do futebol: a conectividade social entre aqueles que estão presenciando o jogo, dentro e fora da quadra.

Mas, de repente, após aquele comentário que veio como uma faca em seus pés, o futebol do menino sumiu junto com a vontade de ser notado através de seu talento. Assim, o garoto se viu pisando em uma “terra estrangeira”, deslocado em um espaço que não comportava seus sonhos.

Entre os brasileiros, o drible virou uma espécie de ritual profano, uma dança Lundu. Parafraseando Nelson Rodrigues: Brasileiro é menos brasileiro no Brasil. E a cena ocorrida naquela quadra fez-me imaginar o peso daquele garoto em se sentir culpado por apreciar o lúdico, o imaginativo, ou seja, por conservar o estilo brasileiro.
Se Garrincha, Pelé e Rivelino tivessem no futebol de hoje, eles teriam se aposentado sem ter dado um drible sequer na vida, impedidos de exercerem sua arte por excelência por terem que ceder à obediência da “ciência-tática”.

Porém, não é novidade entre os “cientificistas da bola” a concordância de que o futebol evoluiu e por isso não tem drible, ou de que o futebol precisa ser mais competitivo, negando o drible como recurso que leva à vitória.

Mas eu contra-argumento dizendo que, na verdade, o futebol não evoluiu, nós é que perdemos a essência do jogo brasileiro porque não entendemos nada da nossa cultura, substância que se manifesta dentro e extracampo, e que valoriza a nossa tradição lúdica.

É mais fácil ver o brasileiro sair de seu País de origem e virar um alemão, espanhol ou inglês relatando uma certa “cultura futebolística” que aprendeu no exterior como se fosse ensinar aos brasileiros um esporte novo.

O último jogo da Seleção Brasileira, por exemplo, contra a Rep. Tcheca, surgiu um comentário criticando a forma como o Brasil está se preocupando demais com a tática, justificando que esse era o principal motivo pelos jogadores do País não terem mais a capacidade de driblar.

Não demorou muito para os cientificistas da bola estufarem o peito e refutarem a opinião dizendo que o brasileiro não pode ser mais individualista porque o futebol mudou.

Porém, a impressão que eu tenho é de que o futebol não mudou, mas a forma como queremos interpretar o jogo brasileiro sem entendermos a cultura do nosso país e as influências que dela decorrem.

Tomemos o Carnaval como exemplo: imaginem um carnaval sem dança, sem todo seu processo lúdico e, assim, limitando suas gestualidades corporais, o que aconteceria de imediato? O público jamais teria a capacidade de interagir com aquilo que está acontecendo porque perderia a capacidade de sonhar em conquistar o mundo dançando.

A mesma coisa é o futebol brasileiro: o jogador precisa ter espaço para desfilar suas gestualidades para que não só ele, mas também o público sinta prazer em estar participando. Sem isso, o jogador perde a sua força e seu talento, desconexo com o público e abandonado dentro de si.

É o drible do jogador brasileiro que resulta na sua interação com o torcedor. É a despretensão do jogador que desperta a aproximação com as suas origens e o faz renascer de uma vida outrora desconhecida.
Em suma, cada jogador é um garoto impedido de driblar porque a competitividade e a vontade de apenas passar a bola para ganhar, respeitando a mãe-tática, é tão mais forte quanto a nossa vergonha por termos uma cultura.
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Alessandro Caldeira é jornalista, santista e nas horas vagas prefere postergar qualquer um desses títulos para se dedicar à literatura, música e cinema.









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Taciana Oliveira é mãe de JP, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.





por João Gomes__

Líria Porto (Araxá/MG), a quem entrevistei para esta janela, me concedeu a oportunidade de editar mais um trabalho seu a partir de duas seletas de poemas. Mesclando de um e outro, cheguei ao volume em formato de e-book A sede do rio não cede publicado para ser lido gratuitamente por Vida Secreta Publicações(http://vidasecreta.weebly.com). Líria se chega para estar no mesmo catálogo que participam Adriane Garcia (MG), Gerusa Leal (PE), Wilson Freire (PE) e Marcelino Freire (SP). 

Com versos contundentes, diz muito em poucas palavras, conseguindo ora ser trágica, ora ser humorada, dando novos sentidos ao que acreditamos estar fechado em si mesmo. É uma poesia que penetra como a água em qualquer superfície, nem que seja para deixar úmido a matéria dura ou sugadora de afeto, encantamento e deleite. A sede do rio não cede, título que carrega sonoridade, ritmo e muito o que se dizer sobre a poesia que produzimos no deserto catedrático que atravessamos. 

torrão

o rio caminha caminha
alcança o destino mas fica onde estava

um rio não larga as origens
embora se perca nas águas salgadas

a sede do rio não cede

Sua poesia é um aprendizado imagético, sintático, rico em todos os sentidos, quando clareza e concisão vão de mãos dadas num amor pela língua portuguesa capaz de emocionar e se fazer entender por qualquer leitor. Líria é, como no seu nome, o porto onde se entrega poesia num embarque e desembarque, porque ela sabe e escreve: “o poeta tem ideia fixa”. 

E essa sua e nossa sede de rio nunca cederá à censura, à perseguição de liberdades individuais ou mesmo festejo do que matou e nunca se responsabilizou pelo que se fez. Que o poeta e o leitor tenha ideia fixa, mas que seja naquilo que humaniza e possibilite a vida em sua beleza mais real. Porque só a poesia pode humanizar o homem, só a poesia pode humanizar o homem, só a poesia… é e sempre será o meu mantra no rio de ressignificados onde tento nado/nada. 

por Taciana Oliveira___


Não sei mais o que dizer de autoria de Jéssica Gabrielle Lima, uma publicação da Aliás Editora, é um desabafo poético  sobre perdas, afetos e possíveis recomeços. As ilustrações de Jéssica revelam com delicadeza o caos emocional de uma solidão feminina. Tudo dói, é intenso, frágil e absurdamente sincero. Tudo grita e se cala na mesma proporção. Não sei mais o que dizer cria atalhos para conexões visuais onde o amor reverbera além de toda ausência.

*Jéssica Gabrielle Lima é editora e ilustradora da Aliás. Formada em Letras, dona de um gosto musical mais-que-perfeito, criada no Modubim, Fortaleza, atua como professora, revisora de textos e mediadora de leitura. 



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Taciana Oliveira é cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.


por Juliana Berlim__

Selva Almada esteve no Brasil em 2018 para o lançamento nacional de seu livro Garotas mortas (Editora Todavia), tradução do original argentino "Chicas muertas" de 2014. A obra pretende acompanhar os desdobramentos de três assassinatos de jovens argentinas entre as décadas de 80 e 90 (Andrea Danne, Maria Luísa Quevedo e Sarita Mundin). Nenhuma delas era portenha e todas provinham de famílias da classe trabalhadora e/ou dirigidas por mulheres. Todas com idades entre quinze e vinte anos. O alijamento socioeconômico contribui, infere -se, na irresolução dos crimes. Almada, ela mesma uma jovem do interior do país, criada em uma cidade vizinha à da família de uma das vítimas, persegue essas histórias e refaz as pegadas deixadas pelas investigações conduzidas. Vasculhando os detalhes dos inquéritos, entrevista familiares, ex-namorados, amigos, vizinhos, conhecidos, qualquer um que permita a elucidação dos crimes ou lance nova luz ao obscurantismo dos acontecimentos de antanho.
Como técnica narrativa, Almada emprega a autoficção em conjunto com uma forma sincopada de jornalismo literário, já que a autora recusa sistematicamente a seus interlocutores a alcunha de "jornalista". Ela é sim uma escritora atormentada pelos fantasmas dos assassinatos de mulheres que, por serem tão próximas, poderiam ser qualquer conhecida, qualquer uma de nós. Este efeito aproximativo cria a vinculação pretendida pela autora para nos fazer perceber que os crimes contra o gênero afetam-nos mais diretamente do que a imagem plasmada, fria de uma notícia de jornal possa fazer perceber. Ela observa igualmente a inexistência, à época das mortes das jovens, do termo "feminicidio". O neologismo aponta para novos modelos de sociedade em que se entende a urgência do cuidado quanto à condição feminina, a qual, como Almada apresenta diversas vezes em seu livro, é ainda entendida como terreno livre para a consumação dos desejos e das perversões masculinas. O corpo da mulher é, em suma, um eterno campo de batalha.


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Juliana Belim é professora de Língua Portuguesa e Literatura do Colégio Pedro II. Conduz no mesmo colégio, o projeto de iniciação científica Neuromancers, de leitura e pesquisa sobre romances de ficção científica, bem como faz parte do corpo docente da pós-graduação Lato Sensu Ererebá – Educação Étnico-Raciais no Ensino Básico. Participou de três edições da FLUP – Festa Literária das Periferias, com a publicação de quatro contos no total.


por João Gomes_____

Quem passeia pela literatura feita por escritores independentes sem dúvida sabe o que é um zine. Pode ser e ter qualquer formato, guardar textos de um autor apenas, de vários, ilustrações, o que se desejar sendo autoral ou editorial. Pra ser zine tem que ser impresso, sim. Mas o projeto gráfico pode também ser disponibilizado na rede, o pdf pode ser encaminhado por e-mail e etc. Venho aqui falar então do zine Bellzebuuu, do estado de Minas Gerais, que em seu primeiro número em agosto de 2017 circulou por Belo Horizonte após a curadoria e realização de Adriane Garcia e Sérgio Fantini. Finalzinho do ano passado, fui convidado por Adriane para transformar o zine numa publicação de Vida Secreta, onde sou editor. Da minha leitura do material fiz a editoração eletrônica que segue. É para ser lido de uma vez, numa sentada. A temática proposta aos autores paira sobre como a religião pode corromper o estado laico com seus retrocessos e doutrinas.



por Taciana Oliveira___


O zine A dor do agora é mais uma publicação do Aliás Selo Editorial, e está disponível apenas para leitura na plataforma Calameo. Conversei com a Thaís DSR que responde pela autoria do texto. O resultado dessa conversa rendeu uma entrevista pocket para o Mirada.
É a tua segunda colaboração com o Aliás Selo Editorial. A primeira foi a participação no e-book As Cidades e o Desejo. Como foi produzir o zine? Era um formato novo para você?
Eu já tinha visto muitas mulheres escreverem no formato de zine. Até já tinha comprado alguns em feiras feministas e os da editora Aliás (comprei todos). De alguma maneira parece que esse formato é utilizado como ferramenta de luta das mulheres, já que as editoras nem sempre nos publicam e foge de outros formatos mais institucionalizados. Mas nunca tinha produzido um. Durante o processo me senti conectada com essas outras mulheres que utilizam o zine para se expressar.
Juliana por Thaís DSR
Você e a Juliana DSR assinam a publicação. Fala um pouco do processo criativo dessa parceria.
Aqui em casa somos três irmãs muito unidas e conectadas. Parecia um caminho natural a gente fazer as coisas juntas. Nós três temos uma ligação diferente no mundo das artes, a Ju desenha, eu escrevo e a minha irmã Carol é da área dos instrumentos musicais. Toda vez que escrevo algo novo é para elas que mostro primeiro. E, em contrapartida, a Ju sempre mostra seus desenhos e a Carol suas canções. Acho que isso une a gente. Alguns desenhos já estavam prontos e eu achei que cabiam no zine. Como o da Marielle e o da Matheusa, que a Juliana fez na época em que tudo isso doía ardentemente. Na época eu escrevi o texto da Marielle e ela fez o desenho, eles já se encaixavam. Outros a gente pensou juntas. Nós relemos os textos e pensamos o que poderia simbolizá-los. Foi tudo muito compartilhado, por isso assinamos juntas. É uma criação de irmãs.
Thaís por Juliana DSR

Quando li o zine lembrei muito de uma texto da Clarice Lispector: Eu não aguento a resignação. Ah, como devoro com fome e prazer a revolta. Lembrei também da força dos versos de Maya Angelou em Still I Rise. A dor do agora é um "manifesto", um texto urgente que grita por resistência, uma porrada para acordar os que estão na apatia?

Acho que a A dor do agora trabalha com dois movimentos. Tem essa chamada pública de que é preciso levantar, que o mundo nos exige coragem, que ficar parada não é uma opção. Mas também são processos muito pessoais das dores que lutar e resistir nos causa. Então também é um texto que pode tocar as pessoas que já estão lá, que já tiveram seu despertar político, que já estão nas trincheiras. Porque fala do quantas vezes estamos cansadas, no quantas vezes pensamos em desistir, fala sobre perder batalhas. A morte da Marielle foi uma dessas perdas irreparáveis, que nos destruiu em vários níveis. Ela era a primeira vereadora lésbica e negra que eu conheci. Era mágico saber que ela existia. Nós chegamos a estar juntas na construção do movimento de mulheres lésbicas do Rio de Janeiro. E quando a assassinaram... Nossa! Nada poderia reparar isso! Nós perdemos e sabíamos disso. Mas também sabíamos que Marielle não iria querer ver a gente se conformando com a derrota. Então levantamos em meio a dor. Por ela e por todas as mulheres. Outros textos falam muito sobre a lesbianidade e esse processo de sair do armário, mas não só de sair, mas também de sentir orgulho de quem é (o texto da Cidade e os desejos também fala disso). Todo militante homossexual por mais que levante suas bandeiras com orgulho no presente carrega consigo um passado de dúvidas, muitas vezes de vergonha de si, um processo doloroso de autoaceitação. A dor do agora também é pra elas/eles. A dor do agora mas que a gente sabe que não é pra sempre.


Thaís DRS é professora de Geografia, Mestre em Educação, lésbica e feminista.
*Juliana DRS tem essa sensibilidade no traço que parece se refletir na vida.

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Copio aqui o texto do lançamento do zine, escrito por Anna K de Lima, integrante do Aliás Selo Editorial, uma das escritoras mais porretas do Estado do Ceará, quiça do Brasil! As mulheres do Aliás não se cansam em multiplicar afetos . Elas reverberam o mundo:

A gente se empenha em impulsionar mulheres pelo mundo, Aliás! Uma força revolucionária, essa, de estar de mãos dadas — umas às outras. Daí apresentamos a zine da Thaís e Juliana DSR que nos toca imensamente sobre as formas de nos posicionarmos e sermos resistência nesse mundo. Não tá fácil, a gente sabe (e sofre!), mas é importante que estejamos juntas.



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Taciana Oliveira é cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.
por Tânia Consuelo___

Francesca Woodman
Viver reprisando mais uma vez. 
Algo redundante. Estava cansada da cor estéril do esmalte. O cigarro dourando os dentes, enegrecendo os lábios. Diacho epidêmico. Agosto na vida. E quem escreveu essa obra. Quem foi que não recriou as histórias da vida? Melinda sempre a cozer e empanturrar. Comida encomendada pelo diabo. Olhava para o lado e um ramo de arruda para contrabalancear. A pequena que tanto sonhava? A minha querida olhando para onde não tinha gente. Era sempre assim e eu tentava imaginar o que passava. Não era às vezes que colocava os olhos para a parede. E eu parava e vagava meu pensamento a tal ponto que tudo ao redor perdia o foco, passava a me comunicar com o passado. Refazia uma a uma as questões ao me relacionar com o mundo. Muitas pessoas eu lembrava e de repente um gosto de sangue na boca. Fazia muitas costuras com sentimentos de mágoas e ponderava cada rancor. As intrigas iam se desfazendo na minha cabeça. Aquilo que vinha na minha mente, sentimentos que se interpunham a qualquer angústia. E meus impulsos que não pretendiam reconhecer certas ousadias. Não adiantava voltar atrás dos que vêem a vida por um ângulo tão arbitrário. Que se mentem o tempo todo. A ilusão que está sempre pronta a revidar e tolher-se depois de uma intriga. E pensava o quanto era interessante saltar de um ponto e ver a vida de fora. Qual um satélite para com a Terra. Por esta premissa, o desgosto não mais me abala. A angústia se desfaz. Não sou eu que tive ausências, pois exilar-se é também uma forma de dizer que em algum lugar existe o não-exílio. Para que ter medo da loucura? O reflexo de uma loucura está no profundo da alma. E quando me tenho raso eu simplesmente adoeço. Porque não dá mais para ver certas coisas quando se prefere a superfície para nunca temer o óbvio que é a vida. Então pretendes encarnar sempre do mesmo ponto para sentir somente uma parte do existir. A dor é o revés da tolice.




por Aleksandro F. de Paula___


Imagine uma pessoa sendo criada com todo o cuidado, todo o carinho do mundo, dentro de um ambiente familiar seguro e feliz. Seus pais evitam que ela tenha contato com qualquer coisa que sugira a violência — filme, desenho, gibi, brincadeira — isso é coisa para menino, ela é uma garota, sempre a encheram tão somente de mimos e afeto.

Imagine que essa garotinha, já então uma adolescente, tem seu coração invadido por todo o feitiço, toda a mística encantadora do amor. Já então com uma tonalidade um pouco diferente do que estava acostumada, mas com a mesma substância do amor cuidadoso e verdadeiro de que sempre fora alvo. Sua vida, de repente, é um conto de fadas. O príncipe encantado, um garotão que responde aos olhares de princesa, as deixas de apaixonada. Ele se diz encantado por ela também, ela enlouquece de amor. Agora sua existência é tudo aquilo; tantos contos de fadas assistidos e, então, ela era a protagonista. E o cara é um príncipe mesmo, enche-lhe de todo carinho e da afeição que ela sempre tivera.

Alguns meses de convivência e, de repente, ela recebe o primeiro tapa; informação difícil para apreender. Fica chocada com aquilo, mas, acima de tudo, está apaixonada. Como uma esponja, o seu amor absorve esta nova palavra sentida na pele virgem: Violência. E continua amando-o “mais que tudo”, como costuma dizer-lhe e repetir ao ouvido
Um segundo tapa já não é tão traumatizante, embora, o que sente, então, recorde a dor na alma do primeiro ato.

O terceiro, o quarto tapa... e, mais tarde, o primeiro murro; um olho roxo é mais evidente que a primeira olheira, causada pelas noites de insônia, quando o conhecera. O amor talvez seja a doença da alma. A mulher tem dessas coisas em sua singeleza; uma amiga dela nunca esquecera o primeiro amor, ainda que tenha durado tão pouco. O dela poderia perdurar por muito e muito tempo, se...

Quando o primeiro dente quebrado e a primeira tentativa de ele feri-la com uma faca de mesa acontecem, ela talvez já tivesse assimilado o termo “Violência”. Mas, ao contrário, se desespera ainda. Passa pela cabeça como seus pais não a prepararam para aquilo. No entanto, mais difícil de trazer consigo aquela feia cicatriz no tórax, é aceitar viver sem o seu grande amor. O primeiro e único amor.

Contudo, quando acontecem os cem números de tapas, de murros, o segundo corte no rosto — resultado de mais uma prova de amor dele — o primeiro e derradeiro tiro, ela, possivelmente, já tivesse assimilado a palavrinha maldita, e, talvez, fosse a única palavra que lhe restasse daquele “amor”. Mas, então, era uma compreensão já tardia e ineficaz, ainda que o manuseio da arma e a precisão dele não o fossem.

O pai dela já não consegue ver o resultado final de sua princesinha no velório. Com tanto amor e carinho a criara, e outro, usando das mesmas palavrinhas mágicas, a levara, tolamente, para aquele fim.




              Conto selecionado da obra O Mecanismo das Horas, Selo Redondezas, 2015.

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Sobre o autor


Aleksandro F. de Paula (Olinda/PE, 1976) é escritor e funcionário público. Publicou O Mecanismos das Horas (Selo Redondezas, 2015), 46 Escritos (Selo Birrumba, 2018), Nada mais e outros poemas (Selo Futurarte – Poesia, 2016) e A Criação do Temor e outros contos (Selo Redondezas, 20170. No prelo: Novos Escritos e Objetos Mortais Inusitados e outros contos.