por Dias
Campos__
Conversava, há pouco, com um amigo
ao telefone. A certa altura, perguntei se ele teria alguma dica que me ajudasse
a dormir, pois tive insônia na noite anterior e queria garantir uma noite
revigorante.
Ele
respondeu que bastava ir de carona com a sogra ao supermercado.
Eu
ri, mas insisti no pedido.
E
ele teimou na resposta; e pediu que prestasse atenção.
Esta
indicação, faço questão de compartilhar com você, amigo leitor, sobretudo nestes
tempos de confinamento, em que rir é o melhor dos medicamentos.
Em um determinado sábado, sua sogra
teve a ideia de ir visitá-lo pela manhã. Na realidade, o que ela pretendia era rever
a filha e o neto, e pedir para que ele a levasse ao supermercado, quando,
então, faria dele o seu carregador.
Antes de responder, meu amigo
resolveu consultar sua esposa com um simples golpe de vista.
Mas como ela permanecia de braços
cruzados, sobrancelhas levantadas, e com a cabeça levemente inclinada para
frente, alternativa não teve senão a de aceitar o pedido, buscando encobrir o
sorriso amarelo.
No
entanto, como não digerisse o terrível ônus de mão beijada, aproveitou a
oportunidade para economizar combustível, justificando que teriam que ir com o carro
dela, pois o seu estava mais sujo que um utilitário recém-saído de um rali.
Partiram
logo depois do almoço. Ele foi no assento do carona, pois sua sogra jamais admitiria
que dirigisse a sua preciosidade.
Só
que sua sogra nunca foi uma condutora exemplar. Daí que toda vez que ela
cometia uma barbeiragem, além de ter que engolir as frases solidárias que
vinham dos outros motoristas, ela ainda teve que aguentar os seus olhares que,
vindos de esguelha e acompanhados de um levíssimo sorriso, incomodavam bem mais
do que o linguajar alheio.
Por
óbvio que a alegria se manteve durante as compras, pois sua sogra se esforçava para
agir como se nada tivesse acontecido, e ele se desdobrava para não rir a cada
vez que trocavam palavras.
O
retorno não foi menos monótono que prazeroso.
Sua
sogra se despediu em torno das dezenove horas. E se você acha que ela saiu
muito tarde, bem mais tarde teria saído se tivesse ficado para o jantar!
Quando
foi para a cama, ensaiou relatar para a esposa todas as imprudências,
imperícias e violações que sua mãe tinha cometido, sobretudo as que foram registradas
pelas câmeras do CET.
No
entanto, como sua esposa estava exausta, e morrendo de sono, o jeito foi deixar
o relato para o dia seguinte.
Mas
como o sono não vinha, resolveu refazer mentalmente a ida e a volta até o
supermercado.
E
a cada vez que se lembrava dos votos de felicidade que sua sogra recebia dos outros
condutores, que calculava os pontos que acumularia na carteira de motorista, e
que estimava o valor que teria que desembolsar para pagar as multas de
trânsito, mais sorridente ficava, mais seu corpo relaxava, e mais sua alma se
preparava para uma noite de belos sonhos.
Daí
foi só virar de lado, e dormir o sono dos justos.
Depois
de rirmos, eu agradeci a sugestão, mas dela declinei, pois além de gostar muito
da minha sogra, era obrigado a confessar que ela dirigia muito melhor do que eu.
O jeito seria apelar para os barbitúricos, caso a insônia retornasse.
Aconselhou,
então, que usasse esses venenos só em último caso, pois sempre ouviu dizer que
diminuíam o tempo de vida.
Sendo
assim, ouso abusar da sua paciência, leitor amigo, e peço uma indicação. Por
acaso você sabe de alguma mezinha que me ajude a dormir?
por Manu Bezerra de Melo__
Tinha
um gato às mãos que miava sem parar. Tentava acalmá-lo sem sucesso.
Repentinamente, o felino avança em direção ao seu peito, adentra seu corpo,
possui-o, acomoda-se no seu interior de modo que ela começa a miar. Tenta dizer
umas palavras, soa engasgada. Angustiada, rebate-se e acorda deitada de bruços
na cama, gofa uma água azeda quase sufocada. A porta está fechada, é o gato,
quer sair. Tem fome. Mia alto enquanto observa ela se levantar lentamente,
quase tonta. Abre a porta, volta pra cama, apoia-se com os braços na janela.
Abre as cortinas e olha o céu. Está azul e brilhante. É domingo, um domingo de
verão. Seus cabelos então dançam o ritmo do vento que bate e ela deita em forma
de brisa. Há um copo com água na mesa lateral à cama. Alcança-o, bebe dois,
três goles curtos. Não tem pressa, nem precisa. Hoje não vai sair, nem vai
trabalhar, nem vai ao mercado, não vai ao ginásio, nem a biblioteca. Hoje vai
ficar em casa, assim tem sido. Pode se recuperar do seu pesadelo felino, pode
lamber suas feridas. Ficar em casa tem suas vantagens. Está cansada das
máscaras que precisa usar pra esquecer-se de si mesma, e pra proteger a si, deseja
outras novas mais condizentes com sua figura. Ficar em casa não deixa de ser
privilégio. Há comida na tigela, há uma manta, há uma janela pra ver o céu, há
vento.
Setenta
dias podem passar rápido, a depender. Ou podem ser lentos como um jabuti de
apartamento. Neles consegue estar atenta a coisas dantes nunca reparadas. O
movimento das nuvens de segunda a sexta-feira, e suas mudanças de direções aos
finais de semana. O caminho das formigas até o buraco no móvel de madeira da
cozinha, seu esforço pra carregar no lombo a comida da semana tal qual carregar
seis sacolas cheias do mercado, três em cada mão. Os movimentos contínuos do
gato; cochila de manhã, dorme a tarde, diverte-se a noite com ruídos
assombrosos. Em trinta dias repara melhor a crosta de poeira que se forma sob
os móveis, dia a dia crescente. E ignora a crosta mais vezes enquanto alterna
os olhos a tomar conta da menina que, às cinco em ponto, desce com sua
bicicleta e dá dezoito ou vinte voltas em torno da fonte do seu quintal. Depois
deixa pousada por cima das roseiras mantando ali as cores múltiplas, promovendo
uma emboscada contra si mesma.
Esta
manhã viu mais pombos que o normal. O alpendre está imundo. O gato salta pra
cima do vidro e arranha-o com as patas em tom de ameaça. Os pombos desdenham do
ridículo, depois voam rasantes em desorientação pra pousarem de volta no mesmo
alpendre, pra cagarem de volta no mesmo alpendre enquanto ameaçam espelhos que
revertem o sol, pinos de repelência, discos velhos em cd-rooms pendurados à
janela. Enquanto se arriscam no céu que todos desejam, mas só eles o têm, e
sorriem pra o despeito dos que os chamam de ratos.
Setenta
dias podem ser proveitosos. A ordem dos livros na estante já não é a mesma e
foi garantida a descoberta de um novo trapo liso pra limpar prateleiras que já
não engancha nas farpas. A louça suja acomoda-se mais do que nunca ao formato
da pia, a pia, no entanto, luta contra o peso e o incômodo das panelas
anti-aderentes. A comida podre dos restos do almoço de ontem escorrega
lentamente pela parte interna do saco preto da lixeira, cujo odor é possível
sentir tão logo a porta da cozinha é aberta. Seu corpo se toma em pelos. Não há
lâminas, não há ninguém pra ver este corpo. É inverno, está felino agora, nem
mesmo é possível saber qual o dia deixará de sê-lo. É possível deitar-se
novamente, e deita-se, embola-se de um lado ao outro, abraça as pernas como um
feto, debate-se por dentro tudo aquilo que pousa por fora, deixa o corpo dorido
tomar a forma do impossível. No teto há uma projeção de si, mas a imagem não
condiz com a de costume. Indeterminável, indetectável, incompreensível. Soa seu
alarme, um som estridente. Sente o estado de emergência e pode, então, ser o
que quiser. Até segunda ordem.
Manuella Bezerra de Melo é recifense, autora de Pés Pequenos pra Tanto Corpo (Urutau, 2019) e Pra que roam os cães nessa hecatombe (Macabéa, 2020), tem mestrado em Teoria da Literatura e atualmente cursa o Doutoramento em Modernidades Comparadas: Literaturas, Artes e Culturas na Universidade do Minho, em Portugal, onde reside.