Um conto de Fernando Ferrone





por Fernando de Souza__

APRENDENDO A VIVER COM A SOLIDÃO DO MORRER



morte, não sejas orgulhosa
apesar de alguns te chamarem terrível e poderosa
tal não serás
aqueles que pensas teres deixado para trás
não morrem, pobre morte,
nem a mim podes levar
após um breve sono, acordamos eternamente
e a morte deixará de existir,
morte, tu também morrerás
(John Donne)




Emma Thompson

por Fernando de Souza__

..Não dá pé, não é direito
Não foi nada, eu não fiz nada disso e você fez um
Bicho de sete cabeças
Não dá pé, não tem pé nem cabeça
Não tem ninguém que mereça, não tem coração que esqueça...
(Zé Ramalho)

A expressão popular “bicho de sete cabeças”, assim como “fazer muito barulho por nada”, refere-se à (infindável) capacidade humana de projetar seus medos, ansiedades e angústias em situações aparentemente sem grandes repercussões factuais. Este “bicho” nos lembra a Hidra de Lerna, monstro da mitologia grega, também com várias cabeças, e que tinha a capacidade de regenerá-las toda vez que uma era cortada, crescendo outras em seu lugar. Via de regra, o grande problema dos “bichos de sete cabeças” é justamente este: assim como a Hidra, eles tendem a tomar proporções maiores do que as reais, especialmente quando mal ou não resolvidos...
Neto, personagem interpretado por Rodrigo Santoro, vive com seus pais e sua irmã mais velha, e frequenta o Ensino Médio. É um adolescente comum, com as dificuldades de relacionamento com os pais, dúvidas e conflitos, como outros de sua fase. Usa maconha esporadicamente com seus colegas, por lazer (ou falta dele!), embora mantenha conservados os vínculos familiares, sociais, escolares, etc. Certo dia, Neto e seus amigos, num ato de rebeldia, vandalizam e picham um prédio, somente ele é preso pela polícia e solto mediante a presença de seus pais: ele, autoritário; ela, passiva. A partir deste evento e da posterior descoberta, por seu pai, de um cigarro de maconha no bolso de sua roupa, a vida de Neto vira de cabeça para baixo, com sua internação compulsória num hospital psiquiátrico, autorizado por sua família, para um pretenso tratamento para dependência química - apesar de nenhum exame laboratorial, avaliação psiquiátrica ou psicológica ou sequer entrevista ser realizada durante sua internação – baseado exclusivamente na administração de medicamentos e exposto à realidade de pacientes dos mais variados problemas de saúde mental e de graus de gravidade clínica. Após um período de ressocialização malograda, acontece uma segunda internação noutra instituição, com efeitos terapêuticos e sequelas psicológicas igualmente desastrosas. A nova internação nem surte os “resultados esperados” (por quem?) como, ainda por cima, desestabiliza ainda mais a saúde mental de Neto, novamente entregue a um tratamento desumano, irresponsável e ineficaz. O que não era, até então, um grande problema, agora o é. Um bicho de sete cabeças.
O filme Bicho de sete cabeças (direção de Laís Bodanzky, 2001 ) nos possibilita várias reflexões. Numa esfera subjetiva - embora representativa da realidade de muitos jovens, tomando Neto como seu representante - pensamos nas experiências de descoberta e de rebeldia durante a adolescência, os conflitos geracionais presentes nas dinâmicas familiares, causados pelo autoritarismo, repressão, incompreensão e falta de abertura, e os impactos destas relações na vida afetiva e no comportamento dos adolescentes. Podemos refletir também na dificuldade em aceitarmos o “diferente” (eufemismo para “perturbador” ou “indesejável” tanto nos indivíduos de conduta transgressora juvenil como naqueles acometidos por psicopatologias, por apresentarem comportamentos “excêntricos” (outro eufemismo, desta vez para “inadequado”, “incômodo” ou “desagradável?). Ambos os “perfis” são frequentemente rotulados como desviantes e, em consequência, estigmatizados e marginalizados.

Entretanto, há uma reflexão – senão uma crítica – imprescindível neste filme: trata-se de um símbolo da luta antimanicomial no Brasil. Bicho de sete cabeças é baseado no livro Canto dos malditos, de Austregésilo Carrano Bueno, que conta suas experiências de internação em hospitais psiquiátricos, similares às de Neto.




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Fernando de Souza é psicólogo em formação, mestre em Letras e bacharel em Comunicação pela UFPE. Publicou artigos acadêmicos em Psicologia, concorreu e recebeu alguns prêmios de poesia entre 1991 e 1995.

por Taciana Oliveira
Colaboração: João Gomes___



por Felipe Rocha___




por Taciana Oliveira_
Colaboração de João Oliveira Melo



por João Gomes__

O nosso entrevistado  do  mês é o poeta, músico e produtor cultural David Biriguy.


David Biriguy.
Seu livro Submarino fala sobretudo de amar ou ter sido amado por alguém. Para você, a poesia vem com alguma facilidade, o amor é mais difícil e o que seria um poema pronto? A citar um poema desse seu livro, “Quantas interrogações integram o teu silêncio?”.

A temática do Submarino é o amor, mas o sentimento que se expõe ao longo do livro é o arrependimento. É uma queda. Um declínio. Um mergulho dentro de si para se reconstruir depois da queda.

Acredito que há fluxos de escrita. Não diria que a poesia vem com facilidade, mas que tenho facilidade para escrever e isso facilita a escrita dos poemas. O amor é um lugar comum na literatura, talvez isso o torne mais difícil de abordar de uma forma diferente do que já se tem. O Submarino foi nascendo despretensiosamente. Eu estava em um processo de desapego e estava escrevendo. Quando me dei conta os poemas estavam todos ali. Fiz uma seleção dos melhores textos e reuni neste livro.

por João Gomes___

Obra de Leonilson
Nunca me senti tão lembrado, a contragosto dos héteros, por ser o que sou. Junho é o mês LGBTQ, essa sigla que só cresce, arrastando multidões e adere quase tudo pela diversidade em si. Nunca também fui à Paradas, metrópoles, saunas e cinemas pornô. Mas não é por isso que desejo lembrar nossas conquistas, mas há quem ache que uma Parada da Diversidade do Orgulho LGBTQ é apenas um Carnaval fora de época, um golden shower em becos ou mesmo que cirurgia de vasectomia é a causa de ser homossexual.

Não haveria necessidade de uma sigla se as pessoas não gostassem tanto do rótulo, do estar identificado e agrupado para lutar por direitos óbvios. Com a modernidade, depois da Revolução Sexual, não deveríamos estar batendo nisso. Mas como o óbvio é ululante, como sugere Nelson Rodrigues, persistimos em garantir nosso espaço a um preço caro às vezes. Médicos aclamados por sua atuação, como Drauzio Varella, pesquisador do tema HIV/Aids, atenta para a questão biológica citando inclusive a homossexualidade entre animais. Até o Papa Francisco pede que tudo isso seja esclarecido no julgamento final e que não cabe a ninguém julgar no mesmo plano, todos merecem respeito. Mas há quem acuse que toda a cúria é homossexual, as freiras são bissexuais ou lésbicas e tudo é coberto pela manta divina.

Custa pensar como seria se não houvesse esse embate, essa troca de forças, de olhares, de repressões e ataques homofóbicos. É um salve-se quem puder, só deixe que seus amigos saibam, não dê a entender nada para não morrer. Mas tudo é uma questão cultural, do modo de agir e pensar, e biológica do modo natural de desejar. Negar a si mesmo é algo religioso, por isso há os curiosos, os ativos na homossexualidade e negadores da passividade, donos de uma meta corporativa de homofobia que os encubra. Há um pensamento bem verdadeiro que se encaixa a isso: você pode ser gay e não ser homossexual, e homossexual sem ser gay.

por Taciana Oliveira___


Escrevo ainda “sofrendo” o impacto de assistir Todas as coisas que brilham. Rapidamente faço uma busca para conhecer detalhes da produção do filme e encontro uma matéria no The Washington Times celebrando a estréia da peça  em Nova York:

Every Brilliant Thing no Barrow Street Theatre é talvez uma das peças mais animadoras e alegres para ver neste inverno, mesmo que se aprofunde sobre o tema suicídio e você seja solicitado a ler algo em voz alta.

Explicando: Todas as coisas que brilham é um documentário dirigido por Fenton Bailey e Randy Barbato, que capta durante dois dias, três apresentações, com platéias diferentes, de um monólogo que tem como tema a depressão e o suicídio. A dramatização é conduzida genialmente pelo o ator e músico inglês Jonny Donahoe e pela platéia, que é convidada a atuar em algumas trechos do espetáculo.

O texto é baseado no conto de Duncan Macmillan. Donahoe é o responsável por adaptá-lo para a versão teatral.

O filme e a peça nascem de uma lista elaborada por um filho para sua mãe, que sofre de depressão crônica, Uma tentativa de provar o valor de se viver cada instante da vida. Antes de começar o espetáculo Donahoe distribui pedaços de papel e orienta o público a ler alguns dos itens dessa lista, onde podemos encontrar coisas como: posso me vestir como lutador mexicano, ficar acordado até tarde e poder ver TV, sorvete, guerra de água, a cor amarela, coisas listradas, montanhas russas, chocolates, usar capa, ter uma música perfeita, sexo, passar a noite conversando com alguém, chá com biscoitos...
Jonny Donahoe

Confesso que fiquei um pouco confusa ao determinar o gênero do filme como documentário. Fiz alguns questionamentos que divido com vocês: 

A narrativa teatral é o instrumento principal do filme? O ato de apresentar os bastidores e a preparação da platéia configura como um documentário observativo? A inserção de imagens adicionais para complementar o roteiro é um artifício de uma narrativa poética documental? Teatro filmado é teatro?

Independente de qualquer resposta, Todas as coisas que brilham é um exercício artístico que bebe da fonte de várias linguagens e suportes. Fiquem atentos na maravilhosa playlist, na fotografia em preto e branco e na delicada montagem escolhida  para o filme.

Jonny Donahoe é um ator espetacular. Ele consegue expor um tema tão doloroso  de uma maneira educativa e peculiar. Segundo dados da Organização Pan-Americana da Saúde - OPAS, o suicídio é a segunda principal causa de morte entre jovens com idade entre 15 e 29 anos. 

Todas as coisas que brilham nos convida a dançar, chorar e viver. O filme transborda sentimento.Finalizo o texto partilhando alguns itens da minha lista:

Nadar no mar em dia de sol com chuva (sempre tem um arco-íris no horizonte)
Conversar bobagens com os amigos
Criar playlists com meu filho
Pudim
Café
Abraço
Ser solidária
Ouvir o silêncio
Cheiro de livro novo
Amar e mudar a coisas...

* Disponível na HBO GO

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Taciana Oliveira é mãe de JP, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem
por Taciana Oliveira__

Tudo o que o homem podia ganhar no jogo da peste e da vida era o conhecimento e a memória


A Peste não é apenas o livro que deu a Albert Camus o Prêmio dos Críticos, em 1947, e o colocou no patamar da escrita contemporânea, mas também é uma das obras fundamentais para compreender a visão filosófica do autor sobre a estética do absurdo e a revolta. O jornalista e escritor franco-argelino compõe uma alegoria sobre a ocupação nazista, que deve e pode ser entendida como uma paridade crítica a qualquer regime totalitário. Publicado em 1947, A Peste traz uma narrativa em terceira pessoa. O médico Dr. Rieux é o narrador-espectador de uma história que expressa as consequências de uma epidemia provocada pela infestação de ratos em uma cidade.


Vinham, também, morrer isoladamente nos vestíbulos das repartições, nos recreios das escolas, por vezes nos terraços dos cafés. Nossos concidadãos, estupefatos, encontravam-nos nos locais mais frequentados da cidade.


A calamidade coloca a população em estado de caos. Os personagens são reféns de uma situação sem controle aparente. Todas as tentativas de conter o surto respondem pela falta de opções em salvar vidas. O odor dos cadáveres, o isolamento, a falta de esperança perpassam questionamentos sobre existir:


O que dizer então daquele que vai morrer, apanhado na armadilha por detrás das paredes crepitantes de calor, enquanto, no mesmo minuto, toda uma população, ao telefone ou nos cafés, fala de letras de câmbio, de conhecimentos ou de descontos? Compreenderão o que há de desconfortável na morte, mesmo moderna, quando ela chega assim, num lugar seco.


Oran é uma cidade ficcional da Argélia, mas suas ruas, seu povo e a doença que a cerca é real. A peste permanece ainda entre nós, e se atualiza nesse mundo desconexo, herdeiro de um comportamento fascista e de uma hipocrisia teocrática senil. Camus já ponderava:


Na verdade, ao ouvir os gritos de alegria que vinham da cidade, Rieux lembrava-se de que essa alegria estava sempre ameaçada. Porque ele sabia o que essa multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.

Albert Camus
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Taciana Oliveira é mãe de JP, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem



por Taciana Oliveira__








por Taciana Oliveira__

Muitos da minha geração só tomaram conhecimento sobre a existência de Quincy Jones depois do sucesso estrondoso de Thiller, de Michael Jackson. Produtor do célebre álbum que dominou as rádios na década de 1980, Quincy já era um nome de destaque no cenário artístico. Conhecer seu itinerário na música é enveredar por acordes e cenas históricas dos séculos 20 e 21, é descortinar o passado recente da segregação racial nos EUA, é enaltecer a genialidade de um homem, que mesmo em momentos cruciais descobriu o caminho para a redenção.

Trompetista, aos 14 anos já atuava em bandas de jazz. Aos 18 anos foi convidado para fazer parte da banda de Lionel Hampton. Nos anos seguintes se consagra como um dos principais arranjadores da música americana. Ganhador de 27 Grammys, produtor e amigo de Ray Charles, Frank Sinatra, Dinah Washington, Peggy Lee e Sarah Vaughan, ele encontrou fôlego para investir na indústria cinematográfica. A Cor Púrpura , dirigido por Steven Spielberg, nasceu da determinação e ousadia de Quincy Jones em atuar na produção executiva e musical do filme.

Sua trajetória é revista no documentário Quincy, dirigido por sua filha Rashida Jones e por Alan Hicks. O filme traz um rico acervo iconográfico e resgata não apenas a personagem do produtor e arranjador. Quincy Jones expõe detalhes da infância, fala dos seus casamentos, do amor incondicional pelos sete filhos, da mãe com esquizofrenia e da rotina prolífica nos estúdios de gravação. Um dos momentos  geniais do documentário é o reencontro de Quincy com os profissionais que participaram da realização de Off the Wall, de MichaeL Jackson. O compositor Rod Temperton, o engenheiro de som Bruce Swedien, o teladista Greg Phillinganes, o baixista Louis Johnson , o baterista John Robinson, o trompetista Jerry Hay, e o percussionista Paulinho da Costa tocam algumas faixas do emblemático álbum produzido por Jones.

Vale lembrar que o pai de Rashida (ela pode ser vista em algumas sequências do filme) também é produtor da série Um Maluco no Pedaço, e organizou o evento de abertura do Museu Nacional de História e Cultura Afro em Washington. O trecho em que Quincy Jones retorna à casa de infância é talvez um dos mais significativos momentos da narrativa do documentário. Contra todos os prognósticos o menino Quincy se transformou em um ícone da música americana, em um pai amoroso. Um homem de uma biografia apaixonante.











*Pra viajar, dançar e se embriagar nessa celebração a Quincy

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Taciana Oliveira é mãe de JP, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.


por Taciana Oliveira___





O documentário Virando a mesa do Poder, (Knock Down The House, Direção de Rachel Lears), revela os bastidores da campanha de Alexandria Ocasio-Cortez, fenômeno político que obteve vitória esmagadora nas primárias do Partido Democrata, no 4º Distrito Congressional de Nova York. Alexandria é descendente de latinos, com formação em relações internacionais, mas trabalhava como garçonete para ajudar a família depois da morte do  seu pai: "Ser garçonete me ajuda nesta corrida porque sei como é trabalhar sob pressão 14 horas por dia."

O filme conta com a participação de outras três candidatas: Paula Jean Swearingen pela Virgínia Ocidental, Cori Bush, pelo Missouri e Amy Vilela, por Nevada. Todas romperam a mola que impulsiona o establishment nas eleições legislativas de 2018. Recusaram a contribuição de empresas nas suas campanhas,  a participação de velhos nomes do Partido Democrata e a atuação da mídia tradicional. Optaram por financiamento coletivo e doações de eleitores. Essas mulheres ousaram levantar pautas como a da gratuidade do ensino superior e da prestação de serviços de saúde, além de sugerir a criação de políticas ambientais de combate à mudanças climáticas e a construção de uma economia justa para os mais pobres.


Alexandria Ocasio-Cortez foi eleita para uma das cadeiras do Congresso, se transformou em sucesso espontâneo nas redes sociais e foi capa da revista Rolling Stone. É importante conhecer o antes e depois de cada candidata. As suas histórias se conectam em trajetórias de perdas e lutas. Cada uma em sua geografia afetiva e no dia a dia da sua realidade social.

O documentário venceu o prêmio da audiência no Festival Sundance. A produção também é cria de uma campanha na plataforma de microfinanciamento Kickstarter. Virando a mesa do Poder resgata em nós a crença que é possível e necessário realizar mudanças. Agora mais do que nunca é urgente perseverar .


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Taciana Oliveira é mãe de JP, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.



por Taciana Oliveira___

No artigo Mito construído II: o desenvolvimento da crônica esportiva brasileira, de Felipe Rodrigues da Costa, o autor pergunta: Teria sido Mario Filho que, trazendo uma nova forma de escrever, um estilo mais simples, sepultou a escrita de fraque dos antigos cronistas esportivos? Seria ele a referência do nascimento da crônica esportiva, incorporando ao gênero, além da nova linguagem, respeitabilidade ao ofício da crônica? 

O jornalista Mario Filho, irmão do dramaturgo Nelson Rodrigues, é pioneiro na criação de textos que promoveram uma aproximação do jogador de futebol com o leitor. Mas é Nelson Rodrigues, autor do célebre A Pátria de Chuteiras, o responsável pela popularização do gênero. O escritor sabia como ninguém transformar em arte literária sua paixão pelo esporte mais popular do país.

O jornalista Alessandro Caldeira recentemente criou o projeto Afinta, um espaço dedicado ao futebol e a crônica esportiva. Nessa edição publicaremos uma crônica e uma pocket entrevista com o autor.

A crônica esportiva é um gênero visitado por figuras célebres como Nelson Rodrigues e Armando Nogueira. Nelson a imortalizou como gênero literário. Fala pra gente dessa sua paixão pelo jornalismo esportivo. Nelson está certo quando afirma que “No futebol, o pior cego é o que só vê a bola.” ?

Eu acho que a minha paixão pelo futebol começou quando eu era criança. Sempre fui muito viciado em futebol, mas sempre preferi jogar. Lembro que eu tinha um jogo de botão e ficava montando campeonatos com representação da realidade. Criava times, jogadores, montava escalações, enfim, em dia de jogo eu não assistia futebol. Eu ouvia no rádio e ia acompanhando enquanto meus times de botão tinham seus campeonatos particulares. Depois que passou a infância e a adolescência, tive uma fase que gostei mais de tática, estatísticas, modelos de jogos e tudo mais.... Só que nunca me sentia verdadeiramente bem com isso, não sentia que a representação do futebol estava nisso porque se perde um pouco a humanidade sentida durante o jogo. A partir daí eu decidi aceitar o que realmente acredito, que é não só ver a bola, como ela vai até os jogadores, mas sim o que os jogadores fazem com ela... Seus comportamentos, seus sentimentos diante da bola.

Afinta é o teu projeto pessoal. Um espaço para quem acredita na capacidade de transformar o futebol em arte. Escrever sobre futebol ainda é um execício afetivo sobre algo que define alma do brasileiro?

Eu acho que o brasileiro tem muito interesse pelo futebol, de falar sobre futebol. Embora esse interesse tenha diminuído por questões afetivas e culturais. Mas vejo ainda assim muitos escrevendo como uma forma de interagir com quem se interessa. Ainda mais hoje em dia que as redes sociais, como o Twitter, permitem se falar sobre qualquer assunto livremente.

O poeta Paulo Emílio Azevedo diz que "Arquibancada de estádio de futebol é igual missa de domingo - um senta e levanta danado esperando Deus marcar um gol pra libertar o delírio" Pra você futebol é uma liturgia, uma celebração?

O brasileiro tem uma conexão muito grande com o futebol. A cultura brasileira permite isso. Não é difícil encontrar um brasileiro que tenha o sonho de ser jogador, e isso se deve muito à nossa formação nas ruas. Normalmente são os meninos ou meninas que saíram de uma família pobre que tem esse desejo. O futebol te permite ser o que quiser. É aonde o brasileiro tem a capacidade de sonhar e transformar em realidade através da bola. Sempre tivemos uma tendência maior em jogar do que assistir futebol. Brasileiro gosta de sentir o jogo na prática. Mas isso mudou com o passar dos anos por estarmos presenciando um choque cultural. Muitos "cientificistas" idolatram o que vem de fora e expulsam o que vem daqui, rotulando como algo simples e pobre. Isso gera um desinteresse, a torcida não se identifica com isso. Eu vejo o futebol como uma celebração. É no campo que o brasileiro se sente livre para ser o que quiser.


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O Drible Interrompido

por Alessandro Caldeira

O interesse desmedido pela vitória deixou o brasileiro alheio à tradição da gestualidade corporal na cultura do País.


Certa vez, numa quadra escolar onde amigos organizavam as “peladas” todas segundas-feiras, o garoto que mais gostava de driblar recebeu uma advertência de seu companheiro de equipe: “Não faça muita firula”. Assim que acabou o jogo, o garoto comentou perto de mim: “Eu não sei jogar bola”, convencido de que seu estilo de jogo era errado.

Ao mesmo instante, senti como se alguém tivesse tirado o sonho daquele garoto, como um mágico limitado na criação de truques menos ilusórios.

No entanto, quem via o pequeno franzino jogar, logo se sentia diferente perto dele. Em outras palavras, era como se o público obtivesse uma nova descoberta quando a bola grudava nos pés daquele garoto. Os comentários de quem o assistia eram os melhores possíveis: “Esse garoto tem talento”. “Não dê muito espaço, senão já viu! ”. “Ele não fica nervoso na frente de marcador algum”.

A expectativa que a “torcida” gerava em cada toque na bola daqueles pés pequenos e magros o transformava em uma “celebridade”, o público notava-o, aquele era o momento em que ele podia interagir com outras pessoas e tornar-se conhecido sem precisar falar, porque é esse o objetivo do futebol: a conectividade social entre aqueles que estão presenciando o jogo, dentro e fora da quadra.

Mas, de repente, após aquele comentário que veio como uma faca em seus pés, o futebol do menino sumiu junto com a vontade de ser notado através de seu talento. Assim, o garoto se viu pisando em uma “terra estrangeira”, deslocado em um espaço que não comportava seus sonhos.

Entre os brasileiros, o drible virou uma espécie de ritual profano, uma dança Lundu. Parafraseando Nelson Rodrigues: Brasileiro é menos brasileiro no Brasil. E a cena ocorrida naquela quadra fez-me imaginar o peso daquele garoto em se sentir culpado por apreciar o lúdico, o imaginativo, ou seja, por conservar o estilo brasileiro.
Se Garrincha, Pelé e Rivelino tivessem no futebol de hoje, eles teriam se aposentado sem ter dado um drible sequer na vida, impedidos de exercerem sua arte por excelência por terem que ceder à obediência da “ciência-tática”.

Porém, não é novidade entre os “cientificistas da bola” a concordância de que o futebol evoluiu e por isso não tem drible, ou de que o futebol precisa ser mais competitivo, negando o drible como recurso que leva à vitória.

Mas eu contra-argumento dizendo que, na verdade, o futebol não evoluiu, nós é que perdemos a essência do jogo brasileiro porque não entendemos nada da nossa cultura, substância que se manifesta dentro e extracampo, e que valoriza a nossa tradição lúdica.

É mais fácil ver o brasileiro sair de seu País de origem e virar um alemão, espanhol ou inglês relatando uma certa “cultura futebolística” que aprendeu no exterior como se fosse ensinar aos brasileiros um esporte novo.

O último jogo da Seleção Brasileira, por exemplo, contra a Rep. Tcheca, surgiu um comentário criticando a forma como o Brasil está se preocupando demais com a tática, justificando que esse era o principal motivo pelos jogadores do País não terem mais a capacidade de driblar.

Não demorou muito para os cientificistas da bola estufarem o peito e refutarem a opinião dizendo que o brasileiro não pode ser mais individualista porque o futebol mudou.

Porém, a impressão que eu tenho é de que o futebol não mudou, mas a forma como queremos interpretar o jogo brasileiro sem entendermos a cultura do nosso país e as influências que dela decorrem.

Tomemos o Carnaval como exemplo: imaginem um carnaval sem dança, sem todo seu processo lúdico e, assim, limitando suas gestualidades corporais, o que aconteceria de imediato? O público jamais teria a capacidade de interagir com aquilo que está acontecendo porque perderia a capacidade de sonhar em conquistar o mundo dançando.

A mesma coisa é o futebol brasileiro: o jogador precisa ter espaço para desfilar suas gestualidades para que não só ele, mas também o público sinta prazer em estar participando. Sem isso, o jogador perde a sua força e seu talento, desconexo com o público e abandonado dentro de si.

É o drible do jogador brasileiro que resulta na sua interação com o torcedor. É a despretensão do jogador que desperta a aproximação com as suas origens e o faz renascer de uma vida outrora desconhecida.
Em suma, cada jogador é um garoto impedido de driblar porque a competitividade e a vontade de apenas passar a bola para ganhar, respeitando a mãe-tática, é tão mais forte quanto a nossa vergonha por termos uma cultura.
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Alessandro Caldeira é jornalista, santista e nas horas vagas prefere postergar qualquer um desses títulos para se dedicar à literatura, música e cinema.









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Taciana Oliveira é mãe de JP, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.