O Instante de Clarice


Por Anderson Paes Barretto__



Clarice Lispector fotografada por sua amiga Bluma Wainer


, por isso adicionei Clarice Lispector numa rede social da internet. Ela já faz parte da minha rede social do mundo desconectado em Recife, mas eu a quis, quero, como amiga. Clarice é mais do que uma escritora, mesmo estando morta há quarenta anos, ela ainda é. O que? Ela é. Não era, nem foi. É. E por isso eu a quero. Como amiga, diva, guru, mentora espiritual, bruxa.... Ela está aqui no meu smartphone, esbravejando frases de autoajuda, que ela nunca escreveu. Eu a sigo. Não como um servo segue ao seu senhor, senhora. Quase. Porém, como alguém que voluntariamente aceita receber as suas palavras. Eu recebo o seu instante mais instantâneo. Aquele que agora é. Assim como ela também nunca deixou de ser. Eu posso seguir Jesus, num sentido de alma, humildade e subserviência. Mas, para isso eu não preciso recorrer a dispositivos nem programas de computador. Clarice é menos. Não ressuscitou. Mas, após tanto tempo, continuamos a falar dela, ainda dependemos da sua escrita. Então, eu a sigo, com reverência, gravidade e fascinação. Eu sigo Clarice, da palavra lida para a imaginação, da palavra dita para os ouvidos, da palavra sentida para os pelos da pele que se arrepiam, da palavra sentida às lágrimas que caem quando aprendo a perdoar Deus.

Eu perdoo Clarice. Mais. Eu aprendo Clarice, tento decifrar a esfinge, ou simplesmente a sua foto de perfil. Ela tem muitos seguidores, não sou especial por segui-la, não sou especial por nada! Quando eu morrer ninguém me seguirá, a não ser aqueles a quem devo, que em vão me procurarão. Ela se foi e eu nem era nascido. Anos depois cheguei à Terra e ela já não existia. Nos desencontramos. Estrangeiros um do outro, por uma questão de anos, não a conheci pessoalmente. Então quero sim, hoje, a sua amizade, a sua riqueza de alma e o seu mistério. Não é difícil se tornar amigo nesse mundo descartável e superficial, características que são impossíveis de serem relacionadas a ela. Nesse mundo, faço e desfaço amizades com um único clique. Num estalar de dedos e mais rápido que o momento em que a roda do carro toca o chão. No entanto, a minha amizade com Clarice vai além, vem de fluxo para fluxo. Eu curto e compartilho os seus aforismos, os seus trechos de textos recortados sem contexto nem orientação.

Clarice tem fãs, eu sou o número um. Conheço vários que também são números um. Cada um, uns. Para cada um, Ela. Louvamos a sua profundidade, ela, que nunca foi rasa. Agradecemos a sua cara cansada da última entrevista, rimos do seu humor de imitação remixado, curtimos, comentamos e compartilhamos a sua diária atualização. Compramos os seus livros a cada (re)lançamento, ela, que nos deu sua obra síntese e derradeira no ano em que virou estrela.... Explosão! Caiu a conexão.

Preciso me reconectar. Não à rede. À diva, plena. Pego um dos seus, meus, livros. Leio algumas frases maravilhosas, que facilmente caberiam na minha descrição de perfil na internet. Fecho o livro, adiando aquela sensação clandestina que é a felicidade de receber as suas palavras, que tanto me comovem quanto assustam e emudecem. Clarice é rápida, fatal, como toda arma bélica. Estou morto. Mas, ela vive! Voltou a conexão.

Clarice me segue de volta em outra rede social, ela posta fotos posando de divindade, ela, que poderia ser deusa, santa, demônia com quem faço um pacto. Não só de leitura. De cumplicidade. Clarice é pop, é tech, é pós-histórica. Clarice, minha A-MI-GA. Ostento a nossa relação, visto camisas com a sua imagem, cito seus textos sempre que posso. E normalmente coloco suas devidas aspas. Ela, que não precisa nem de pontuação para dizer o indizível.

Clarice fechou a sua conta na rede social, me abandonou, me deixou órfão, alheio, medíocre, macabeu. Morreu? Não. Abriu outra página, com uma foto diferente, em preto e branco e de óculos escuros. Cansou dos antigos amigos que falavam com ela pelo bate-papo, pedindo conselhos amorosos. Adicionei-a novamente, ela, que é minha best friend. Jamais me descartaria, pois eu sei respeitar o seu silêncio. E não só o aceito, como o quero. Não nego, preciso do silêncio para entende-la. Mas a cidade faz barulho, as luzes são fortes demais, as pessoas são brutas e não mais encabulam com a delicadeza de uma esperança que, sem avisar, pousa em nós. Matamos a esperança e pronto.

Eu espero Clarice, somos almas gêmeas. Se acredito em reencarnação? Sim, na outra vida eu fui Clarice. Daria tempo...



*O texto O Instante de Clarice integra o e-book Clarice em Tecnicolor


                                  


Anderson Paes Barretto é escritor, pesquisador e professor universitário. Mestre em Comunicação pela UFPE, teve como objeto de estudo o livro A Hora da Estrela (1977), de Clarice Lispector, e sua adaptação para o cinema. Em 2010, recebeu o prêmio nacional Maximiano Campos de Literatura, com publicação em coletânea no mesmo ano. É membro fundador da Academia de Letras de Jaboatão dos Guararapes (ALJG-PE).