A vida de Maria Bonita hoje


por Henrique Wagner__


No ano em que os brasileiros elegeram um presidente machista e misógino, e em que uma ministra declarou que “mulher nasceu para ser mãe”, e ainda: “me preocupo com a ausência da mulher de casa, hoje a mulher tem estado muito fora de casa”, a editora Objetiva lançou a biografia “Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço”, de autoria da jornalista nascida em São Paulo, Adriana Negreiros. A sociedade civil resiste.

Embora seja forçado demais alçar a “Rainha do Cangaço” ao posto de referência feminista – o livro de Negreiros põe abaixo toda e qualquer possibilidade de consciência política de Maria Bonita –, não há exagero em considerá-la uma mulher “além de seu tempo”. Extremamente corajosa, ousada, de personalidade forte, transgressora, que se impunha mesmo entre os homens mais temidos da época no Brasil. Seguramente essa é a mensagem, dentre as tantas outras do livro, que mais perseguirá o leitor.

Maria Bonita

Maria Bonita nasceu Maria Gomes de Oliveira, em Malhada da Caiçara, Bahia, no ano de 1910 – em suas pesquisas a biógrafa descobriu que a data de nascimento consagrada, 8 de Março, era mais uma das tantas lendas que envolviam o mito – e morreu em 1938 na famosa emboscada da grota de Angico, Sergipe. Aos 16 anos se casa com o sapateiro Zé de Neném, seis anos mais velho que ela. Até que, cansada das traições do marido pé-de-valsa – e talvez ainda mais cansada da “vida besta” de cidadezinha do interior –, engata namoro com aquele que era considerado a encarnação do Tinhoso, quando este estava de passagem pela Bahia, vindo de uma experiência malfadada em Mossoró, Rio Grande do Norte, ocasião em que fora recebido a balas por um exército formado por moradores do município. E o resto é a vida errante de cangaceiro. Ou mais, de mulher do Rei do Cangaço, já que outras mulheres havia no bando.

O livro de Negreiros, como já nos antecipa seu subtítulo, é uma biografia não só de Maria Bonita, mas a grafia da presença feminina no cangaço. Daí é que ficamos sabendo das histórias – todas trágicas – de Dadá, Otília, Maria Honorina, Lídia, Esperança e outras cangaceiras que entraram para o bando a contrapelo, ainda adolescentes, tiradas da família de coiteiros, em geral, e quase sempre estupradas já no primeiro encontro com seu novo dono. Merece ser reproduzido o trecho do livro em que a “posse” de Dadá, nascida Sérgia Ribeiro da Silva, é descrita sem rodeios:
Corisco e Dadá

“Conduziu a menina mata adentro e, quando chegaram à roça da Baixa Grande, jogou-a ao chão. Imobilizou-a, levantou-lhe o vestido, abriu-lhe as pernas e se debruçou sobre seu corpo. ‘Feito um animal’, como ela viria a descrever no futuro, penetrou-a com força, repetidas vezes. Aos doze anos, Dadá perderia a virgindade naquele estupro.

Quando Corisco finalmente se saciou, a garota estava inerte, quase desfalecida, com a região genital em carne viva, esvaindo-se em sangue. Delirando de tanta dor, pensara que suas pernas haviam virado escamas de peixe e, na sua alucinação, "nadava feito uma sereia numa correnteza vermelha com pedras de diamante".

Corisco a arrastou de volta para a casa da tia e pediu à senhora que cuidasse da garota. Quando estivesse recomposta, voltaria para pegá-la.
Nos dias que se seguiram, Dadá enfrentou febres altas, que lhe provocavam novos delírios. Cessada a hemorragia, começou a sentir escorrer, pela vagina, um líquido esverdeado. Para tratar os ferimentos e a inflamação, submetia-se a banhos de assento com ervas locais, preparados por dona Vitalina.” (pág. 33)

Mas se os cangaceiros eram bandidos cruéis (cruéis com pobre, rico, mulher, criança etc.), outras categorias não perdiam a vez. Aliás, Lampião e seus sequazes anteciparam em muito as atividades das famosas milícias cariocas de hoje, possivelmente responsáveis, entre outros crimes, pelo assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes: a própria polícia fornecia armas ao bando, e políticos graúdos requisitavam serviços de todo tipo a Lampião. Nem o santo “Padim Ciço” ficou de fora. Andava sempre a contar com os préstimos de Virgulino, como a missão dada – e não cumprida – de acabar com a coluna Prestes. O padre pagava em dinheiro ou objetos de grande valor econômico.

Mas nada se compara ao que a polícia fez com a cangaceira Otília, que já vinha de tantas dores da vida entre cangaceiros. Segue, para os fortes, excerto do livro de Negreiros que descreve estupro e curra dentro de uma delegacia:

Apesar de todas as agruras, é possível que Otília sentisse saudades do cangaço no período em que permaneceu presa na cadeia de Jeremoabo. Todas as noites a jovem era retirada da cela, violentada por quantos soldados estivessem presentes no estabelecimento e depois, como se fosse um resto de alimento que se guarda para comer no dia seguinte, era jogada de volta na cela.” (pág. 163)

O livro, naturalmente, acaba por tratar do cangaço de um modo geral, pois do contrário Maria Bonita e as outras cangaceiras pareceriam desenhos de criança sobre papel branco, sem chão nem perspectiva. O leitor ganha com isso importantes informações a respeito de um dos maiores e mais comentados acontecimentos da história do Brasil no século XX – ganha ainda em iconografia, já que a edição da Objetiva traz as famosas e mesmo lendárias fotos do hoje mítico fotógrafo libanês Benjamin Abrahão, contemporâneo do bando e um quase amigo de Virgulino. Como a escrita vívida, vertiginosa da jornalista, que, aliás, cresceu no Ceará, toma de assalto mesmo o leitor menos contumaz, funciona o livro como uma excelente introdução ao tema, sem perder a profundidade de uma peça da historiografia brasileira, visto que a autora se valeu de evidente pesquisa rigorosa, indo até onde foi possível, pois, como a própria afirma a certa altura da obra: “a memória da Rainha do Cangaço na imprensa da época é imprecisa, precária e fantasiosa”.

Vale ainda ressaltar que a autora de “Maria Bonita…” não faz concessões às mulheres do cangaço, atestando que um dos princípios do feminismo, a sororidade, era absolutamente ausente entre a biografada e suas “parceiras de ofício”. E vai além, ao afirmar que Maria Bonita, em constante rixa com as cangaceiras, se regozijava das punições – verdadeiros anátemas – que caíam sobre elas, em geral por causa de adultério.

Mas o que fica do livro no leitor é a figura transgressora, “da pá virada”, que deixou marido, pai e mãe, cidade pacata, e correu mundo. Ficam no leitor o machismo e o sexismo dos homens daquela época, que não se contentaram em decepar a cabeça da mulher de Virgulino: seu corpo foi encontrado com as pernas abertas e um pedaço de madeira enfiado na vagina.

E tudo se deu no país que atualmente está em quinto lugar na lista de países com a maior taxa de feminicídio no mundo, segundo a OMS.



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Henrique Wagner é poeta e crítico de literatura.