Papoco é coragem


por Taciana Oliveira__





Entrevistamos as irmãs Argentina e Cris Castro, fundadoras e coordenadoras da Biblioteca Comunitária Papoco de Ideias, um espaço para leituras e brincadeiras, dedicado a formação de crianças e adultos, moradores da comunidade da região do Pici em Fortaleza. Papoco de Ideias é uma explosão de afetos, um projeto que promove uma transformação social para uma comunidade carente em políticas públicas. 
Guimarães Rosa, autor de Grande Sertão: Veredas pontua em sua obra: O mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando.
Papoco é poema, resiliência, encantamento e resistência. Papoco é coragem.

Aprendemos a dividir a vida

Nascida no carnaval de 2016, a Biblioteca Comunitária Papoco de Ideias surge como fruto de revoltas, vontade e consciência de que era preciso descruzar os braços, arregaçar as mangas para garantir um mínimo de direito cultural para os moradores do bairro Parque Universitário (que faz parte do Grande Pici) e, em específico, para moradores da favela do Papoco em Fortaleza-CE. Nascemos e nos criamos nesse bairro ladeado por um dos campus da Universidade Federal do Ceará, e tanto ela quanto as diversas gestões do Governo do Estado e da Prefeitura nos deram as costas. Aqui nossos pais chegaram em 1971, e fizeram morada nessa área de ocupação, que beira uma lagoa que fica dentro da universidade. Aqui, nesse terreno úmido e escorregadio, aprendemos a dividir a vida com outros tantos que nos eram e ainda são vizinhos, mas aprendemos principalmente a nos levantar depois de tantas quedas em um terreno brejado.

Teve uma hora que dentro de nós a palavra “basta” era maior que o nosso medo de morrer

De lá até aqui nunca nenhum projeto de extensão, nunca nenhum projeto social ou política pública de cultura chegou para nossa comunidade. O Estado até entra aqui, mas entra da mesma forma que entra em todas as periferias do país: para punir, constranger, humilhar, abusar do poder, cercear liberdades e também, para matar. O nome da favela diz respeito aos sons dos tiros, comuns e corriqueiros, que já ceifaram a vida de muitos amigos de infância ou dos filhos dos nossos amigos de infância. Teve uma hora que dentro de nós a palavra “basta” era maior que o nosso medo de morrer à míngua enquanto periféricos e favelados que somos.

E começamos ressignificando a palavra Papoco

A Biblioteca é nosso grito que diz: Basta! Sonhamos com o belo, com sonhos realizados, com crianças com acesso aos seus direito, a segurança, a brincadeira, a arte, a uma alimentação saudável, a educação de qualidade, a saúde física e emocional. Queremos contribuir no aqui e agora, mas também com o futuro do/da Papoco. E começamos ressignificando a palavra Papoco, que perde a ideia de bala, de tiros, de violências e ganha um mundo de ideias, de possibilidades que se voltam para as artes, para outras formas de ler o mundo e a vida: através da poesia, de uma conversa bacana, sadia, afetuosa. Através do sentimento de pertencimento, as crianças, que são nosso público principal, não estão sozinhas e isoladas com suas famílias, mas podem contar com os adultos da biblioteca para construir seus sonhos.
A biblioteca foi criada em um espaço da casa de nossa mãe Celeste, (maior apoiadora e incentivadora do projeto). É nessa casa onde moramos. Isso favorece as brincadeiras, o corre-corre, o pega-pega, os "conflitos" e “enredos”: “tia, fulano fez isso comigo”, “tia não foi eu não, foi sicrano”... E por aí vai.

Papocamos no mundo de Fortaleza

Acho que somos mediadores não só de leitura livrescas, mas de conflitos, de sonhos, de visões de mundo, de afetos, da cidade. Mediamos a existência das crianças na cidade à medida que, através da Papoco de Ideias, elas conhecem equipamentos culturais localizados nos ditos “corredores culturais”. Dessa forma, portanto o direito à cidade também se configura. Papocamos no mundo de Fortaleza, no seu trânsito, observamos os grafites e nos encantamos, lemos o mundo pela janela do ônibus que nos leva a atravessar a cidade. Fizemos parte da Bienal Internacional do Livro 2019, onde elas, as crianças, foram recebidas como artistas que tocam no Maracatu do Papoco. Aqui há ainda formação musical/percussiva continua, feita voluntariamente pelo parceiro e amigo multiartista, Batikum. Ele também atua na biblioteca Okupação, em sua casa.


Não há separação do aprender e do brincar, é tudo uma coisa só

Sendo assim, aqui na Papoco validamos não só o direito à leitura, mas o direito ao lazer, ao brincar e o acesso a diferentes linguagens artísticas. E há ainda o direito de pertencer à cidade, posto que levamos as crianças a conhecerem os equipamentos culturais geridos pela Prefeitura e pelo Governo do Estado. Temos em nosso acervo todo gênero de leitura para crianças, adolescentes e adultos. Mas são as crianças que amam a Papoco. Aqui elas aprendem enquanto brincam. Não há separação do aprender e do brincar, é tudo uma coisa só. No início recebemos uma doação de 500 livros do Sistema Estadual de Bibliotecas. Foi um diálogo rápido com o então Secretário Adjunto de Cultura do Estado, Fabiano Piuba, o pessoal da Casa do Conto – Baú de Leituras e do Livro Livre, na pessoa da Anita. Todos os demais livros são doações que recebemos via redes sociais e amigos.

Cine Papoco e a Oficina de Cinema

Temos um cadastro das crianças. O objetivo é conhecer os responsáveis, saber um pouco mais da rotina de cada uma, reconhecer suas necessidades, quem é mais vulnerável e devemos acompanhar mais de perto... Vamos nas suas casas, conhecemos seus familiares, e vemos como funciona a participação de todos na comunidade e a situação socioeconômica dessas famílias. Articulamos atividades culturais (oficinas de arte, passeios, eventos internos e externos). Nossa biblioteca tem o apoio dos amigos que chegam junto, trazendo novas ideias e produção de oficinas. Há alguns comerciantes locais que doam lanches. Exemplo disso é o Cine Papoco e a Oficina de Cinema, uma parceria do Francisco Moura, que mensalmente vem com uma equipe de jovens com formação na área. Francisco é funcionário da Biblioteca Central do Campus do Pici, da UFC e idealizou os projetos de cinema. Ele e a equipe trazem equipamentos e promovem uma roda de conversa depois de cada exibição. O Cine Papoco acontece com exibições na rua. Não pagamos pelas oficinas, todos contribuem voluntariamente. Sempre somos convidados a participar das rodas de conversa e palestras que abordem a temáticas sobre bibliotecas comunitárias, do direito ao livro, a leitura e a literatura em universidades, escolas e saraus. Assim ampliamos o conhecimento das pessoas acerca da nossa biblioteca e comunidade, e de outras existentes na cidade. Em paralelo divulgamos nossas atividades nas redes sociais, captamos livros e redistribuímos com os nossos parceiros.



Um sistema que oprime de todas as formas

A curto prazo acredito que amenizamos uma espécie de pobreza política que está perpassada por essa desigualdade social. Uma criança de classe média acessa uma escola bacana, o cinema, o teatro e toda ordem de equipamento cultural quantitativa e qualitativamente falando. A criança pobre, filha de trabalhadores sujeitos a subempregos, não acessam. E se acessam é de forma rápida, muitas vezes como fruto de “passeios” escolares, em ônibus de quinta categoria e sem segurança nenhuma. Mas pelo menos eles saem de escolas sujas, quentes, escuras, inseguras. Isso não deixa de ser importante claro, principalmente num contexto em que elas quase sempre não ultrapassam as fronteiras do próprio bairro. Muitos tonam-se jovens e nunca acessaram um evento no Dragão do Mar, por exemplo. Queremos romper com isso. Entendemos que isso é uma violência e das grandes! Apartar os sujeitos desde sua infância de situações onde eles podem vivenciar o belo, e diante disso confabular outros mundos possíveis dentro e fora de si, questionar esse mundo, ressignificar esse mundo é crime muito bem pensado por um sistema que oprime de todas as formas.  A roda tá girando do lado de cá e eles alheios as nossas dificuldades. Veja bem, às nossas dificuldades! Só querem saber de nós para nos destruir quando nos percebem como sujeitos potentes. 

 Somos quase um Bacurau! 

E estamos nos armando (com livros, literatura, poesia), nos amando (incentivando para o afeto, mas também para a autodefesa, afinal, num contexto de pobreza a primeira coisa que desaprendemos é a gostar de nós mesmos).  E ter boa autoestima é uma forma de nos defender de quem nos vê como coisa pequena e sem valor. Estamos nos cuidando, nos protegendo, nos informando, repassando conhecimento, valorizando o conhecimento que elas trazem, aprendendo com elas. Somos quase um Bacurau! Talvez falte-nos o efeito daquela sementinha do poderoso psicotrópico, que nos faça ficar com “sangue nos zóis” em um linguajar bem cearense! Mas, nosso sangue ferve! Não dizem que a arte imita a vida? Pois é! O filme nos lembra além de outras coisas importantes que nosso sangue ferve e, enquanto ferve, vamos dando conta de diferentes formas de aniquilar nossos inimigos que são tantos e são outros. Cada criança que se interessa pelo que construímos aqui é, no futuro, um aniquilador em potencial de quase todo o mal que vão querer lhes fazer vida a fora.
Não estamos aqui querendo salvar ninguém, nós adultos nem mesmos sabemos como nos salvar nessa selva, mas estamos aprendo através da leitura, estamos nos projetando para sofrer menos. As crianças não precisam passar pelo que os pais delas passam. Estamos dizendo em outras palavras que se não temos oportunidades, se não temos opções de escolha, nós vamos criar as condições para isso. Estamos criando. E não estamos mendigando nada. Nós sabemos fazer e estamos fazendo com o que temos de forma autônoma, autogerida. Não acreditamos na violência, mas ninguém morre sem lutar não é verdade? E, no que depender de nós, ninguém aqui vai deixar de se defender. O que estamos fazendo aqui de alguma forma, é autodefesa. 


A papoco de ideias não existe sem vocês

Sempre que fazemos as atividades internas ou externas, fazermos uma roda de conversa, querermos que eles entendam que o que têm a dizer importa. Queremos criar o costume da reflexão, da liberdade de opinião, de pensamento e principalmente de fala, nossa arma primeira é a palavra! Tentamos empoderar as crianças no elogio, no conselho, na acolhida, na orientação digna para a vida, fazendo-os se sentirem importantes para nós e para o mundo. Digo sempre “a Papoco de Ideias não existe sem vocês, vocês são importantes, não deixem de vir. Quando essas crianças saem de suas casas muitas vezes sozinhas para buscar não só leituras de livros, mas outras possibilidades de sentir o mundo através também de um olhar atento às oficinas, aos trabalhos artísticos de teatro que trazemos para a comunitária, na confecção de zines com temas importantes do nosso cotidiano (racismo, sonhos, educação...) elas estão se permitindo pensar, criar, buscar, sonhar, realizar na medida do possível e porque não, do impossível. Saem um pouco da realidade difícil dos lugares de morada (quartinhos, becos, vilas) e passam a usufruir de alguns dos seus direitos que corriqueiramente são negligenciados pelo poder público. O maior impacto de uma biblioteca comunitária é o de tornar acessível de maneira fácil, rápida, perto de casa e sem custo, coisas que se não fosse a presença de um equipamento como esse no lugar que moram, eles ou demorariam muito a acessar ou nunca iam acessar. E com isso vamos, devagar e sempre, trabalhando a autoestima.

Nesse dia ela se empoderou para o mundo

Existe o caso de uma criança que era rechaçada pela professora na escola. Ela dizia que a criança não sabia ler. Um psicopedagogo visitou a Papoco, para fazer uma avaliação, e nos testes percebeu que a criança era uma leitora. Sabe o que escutamos dessa criança? Ela nos disse: “Tia, hoje é o dia mais feliz da minha vida.” Então a escola anda muito apartada emocionalmente de suas crianças. Se não fosse a Papoco  e seu  olhar sensível, essa criança ia crescer se sentindo menor, incapaz, constrangida e talvez, de fato, nunca ia desenvolver em sua potencialidade a leitura. 
Nesse dia ela se empoderou para o mundo dos livros, desbravou-o sem medo. Porque um adulto, de referência afetiva , disse que ela sabia lê. E ele disse isso na inteireza de sua verdade profissional, não foi por mero elogio. A escola que temos hoje é um fracasso do ponto de vista freiriano, do processo afetivo do aprender e do ensinar, e infelizmente, de muitos outros pontos de vista. A escola é uma agressora também quando tem no corpo de seus profissionais (de quem fica no portão até a sala do gestor) pessoas racistas, machistas, homofóbicas, bélicas e por ai vai. A Papoco é lugar para aprender a ser melhor. Isso vale não só para as crianças, mas também para nós, os adultos. Não temos nem palavras para dizer o tanto que já aprendemos com as crianças e, por isso mesmo, o tanto que crescemos como pessoas e, mais ainda, o tanto que ainda temos que superar.


O aprender também acontece na observação, no exemplo

Estamos atentas ao que elas falam e reproduzem de forma equivocada. Estamos atentas aos seus comportamentos. E sabemos quando e de qual forma podemos intervir para que elas reelaborem falas, gestos que não são empáticos, que não são por respeito, aproximação e zelo com o próximo. Tentamos também ter o mesmo cuidado e controle sobre o que fazemos e falamos na comunidade e redes sociais. O aprender também acontece na observação e no exemplo. Precisamos ser referência para essas crianças. É algo muito difícil, mas tentamos na medida do possível, amadurecer com tudo isso. Trazemos para as oficinas amigos que são pessoas qualificadas e que sonham esse sonho junto com a gente. Eles também são uma referência. 

É uma fala local, cheia de propriedade

Diminuímos riscos que as crianças sofrem na comunidade.  Se elas escolhem ficar conosco por horas e horas, nesse tempo não estarão nas ruas, sujeitas a uma variedade de situações impróprias, até pra adultos, o que dirá para uma criança. Recentemente fomos convidadas a fazer parte de uma banca de graduação no curso de Geografia da UFC, projeto da aluna Ruth Rios, sob orientação do Prof. Dr. Tiago CavalcanteO trabalho intitulado Fortaleza Literária: uma leitura espaço a partir dos espaços de leitura já sinaliza um impacto a partir do estudo de caso da Papoco de Ideias através da construção de um diálogo teórico da geografia literária e na defesa como espaço de resistência, espaço que quer sim diminuir a curto, médio e longo prazo, entraves oriundos da desigualdade social através da literatura. Esse convite aponta que as bibliotecas comunitárias começam a ser visualizadas como equipamentos sociais importantes para a academia, e possíveis lócus de estudo. Sinaliza que quem atua na gestão desses espaços, sabe o que tem a oferecer sobre o tema, porque é uma fala local, cheia de propriedade.  A universidade nunca se aproximou desse bairro, nem com seus projetos de extensão de intervenção, nem com pesquisas. Esse foi um momento único.  E isso só aconteceu porque há uma biblioteca comunitária aqui, e um professor, uma aluna, e geógrafos se interessam pela literatura como uma referência de sujeitos que se movimentam em um espaço de forma  objetiva e subjetiva. Então o impacto é grande não apenas para as crianças, mas para todos os envolvidos direta e indiretamente na biblioteca comunitária e no seu entorno.



Criança não pode se sentir só

Muito barulho, riso, corre corre pra lá e pra cá, bagunça, liberdade pra lê e brincar, a responsabilidade de cuidar do livro para que outros leiam depois... Cuidar do lugar com atitudes simples, do tipo colocar o lixo nas lixeiras, não arrancar dos pés de fruta as frutas que não estão maduras, não maltratar os gatos e cachorros que transitam no espaço junto com eles, não xingar, nem colocar apelidos indesejados, respeitar uns aos outros, cuidar uns dos outros.
Espalhamos livros nas árvores, penduramos no varal, esquecemos nas cadeiras, no escorregador (que recebemos como doação de uma escola) no assento do balanço. Eles brincam, mas estamos sempre lembrando a leitura de algum livro, eles levam para casa e leem. Há até quem leve livro para o pai. Lemos para os que sabem e os que não sabem ler. Temos oficinas de práticas teatrais, musicalização percussiva (mas temos flauta que recebemos de um amigo músico e eles tocam bastante, mesmo sem saber) trabalhos manuais (teatro de sombra, fantoche, art colagem, pintura, pipa, desenho, fanzine, cordel, composteira), oficina de cinema (o Cine Papoco ocorre uma vez por mês no espaço aberto da rua), oficina de poesia. Já abrigamos um seminário chamado Resistências e Existências das Movidas nas Periferias de Fortaleza com o sociólogo Rômulo Silva. Fazemos roda de conversa formal e informal para  as crianças e adultos. Para os adultos trabalhamos por exemplo sobre violência contra a mulher. Fizemos três edições do Sarau do Papoco, um delas apenas para as crianças. Dois dos nossos adolescentes participaram de uma formação política por três dias em outro município (muita responsabilidade e credibilidade com os  responsáveis).  Estamos desenvolvendo um projeto contínuo de formação que começou em novembro de 2019 e culminará em 2020. O evento será chamado Novembro Negro, e quem está a frente é a Isa, uma historiadora e jovem moradora do bairro, que se tornou amiga no processo de abraçar a biblioteca. Fizemos oficina de palhaçaria, de malabares. Fazemos duas festas grandes anualmente: Dia das crianças e a Festa do Natal. Nelas presentemos  com as doações de brinquedos e livros.


Incentivamos brincadeiras de mobilidade e de movimento físico : pular corda, amarelinha, vôlei, futebol. Jogos de raciocínio e paciência dama, xadrez e quebra- cabeças. Eles criam esquetes e apresentam pra a gente quando menos esperamos. Ou seja, eles já percebem que têm autonomia para criar e que se sentem apoiados por nós em suas criações. Valorizamos cada gesto, atitude, frases que demostram neles sensibilidade, empatia, alegria, generosidade, criatividade. Abraçamos, beijamos, apertamos bochechas, arrumamos os cabelos, dizemos que são lindos e lindas, inteligentes, que estão cheirosos. Dizemos até que queremos ver o boletim. Tudo isso importa! Criança não pode se sentir só. As vezes elas moram com os pais, ou só com a mãe, ou com mãe e padrasto ou madrasta, as vezes com a avó ou só com o avô, ou com um mundo de parentes que dividem o espaço pequeno da casa. Mas esses quase quatro anos de comunitária nos diz que em casa parece que criança não tem vez ou que é cada um por si. Não são todas, mas em sua maioria chegam e saem da biblioteca desacompanhadas de seus responsáveis. Atravessam ruas, correm riscos. Andam só.   Essas são ações e atividades que não ocorrem dentro de uma biblioteca convencional. Mas precisamos sinalizar que nem todas as bibliotecas que se auto intitulam comunitária, desenvolvem esses tipos de atividades.

Forjamos nossas vidas e nosso entendimento do mundo

Se estamos aqui aos trancos e barrancos, é para isso. Acreditamos que é possível e que, se em cada bairro existir um espaço assim, com certeza estaremos contribuindo para um mundo melhor e mais justo. Mas quem está disposto a abrir mão de tanta coisa, da sua privacidade, do silêncio, do seu tempo, do seu pouco dinheiro, do sossego em sua casa para criar um espaço assim?  Temos um espaço grande na frente de nossa casa e, em primeiro lugar, é até uma obrigação moral compartilhar com quem vive num espaço menor. É nele que forjamos nossas vidas e nosso entendimento do mundo. No entanto, precisamos também nos formar e nos informar. Participamos das Oficinas de Escrita Afetiva e Criativa da Editora Aliás, aprendemos a confeccionar livros artesanais. Isso dialoga com as demandas das crianças, principalmente das meninas, que tem interesse em escrever e publicar livros.  Manter esse espaço exige que nos eduquemos para atendê-los. As vezes passamos o fim de semana em algum curso ou oficina. Não queremos fazer de qualquer jeito. Temos agora a presença de um garoto de oito anos com síndrome de down. E a presença dele nos mobiliza a aprender mais sobre suas necessidades, queremos atender todos de forma igual, mas levando em conta as especificidades, as individualidades deles. A primeira vez que esse garoto veio com o casal de irmãos mais novos e a mãe, ele e o irmão choraram para não ir embora. Esse choro significa muito para a gente. O choro e o riso nos importa igualmente. Queremos tentar aplacar o choro para ri melhor o riso.

A eles nosso amor, nossa admiração e o nosso “tamo junto”!

Nossa mãe, nosso pai, nossa imã mais velha, as histórias deles de resistência e de compartilhamento do pouco que tinham: alimento e a própria casa com pessoas que não eram parentes/familiares. Essa casa/ família tem o costume de receber muita gente e ainda temos espaço e livros. O que faltava para começar? Coragem!  São tantos, mas para citar aqueles que lembramos de forma mais imediata: Carolina de Jesus, Conceição Evaristo, Cora Coralina, Ruth Rocha, Chico Buarque, Guimarães Rosa, Manoel de Barros, Airton Monte e tantas outras pessoas desse tempo de hoje e de agora, artistas amigos que perambulam nas favelas, nos saraus e de busão levando arte para quem não tem condição de atravessar essa cidade desigual e pagar por um ingresso. Não tenho como citar todos, mas eles sabem quem são. A eles nosso amor, nossa admiração e o nosso “tamo junto”!


Estamos literariamente e literalmente enfrentando a estupidez 

Um caderno, um lápis, um livro, talvez sejam as únicas coisas que existem na casa de uma criança pobre. É mais fácil ter um livro, nem que seja aquele escolar, do que dinheiro que mobilize a família a ir ao teatro, por exemplo. O que está escrito, de alguma forma em algum suporte, tem uma dimensão imediata. Quem vê um livro, faz uma leitura da capa, mesmo que não saiba fazer a leitura do título. Escrever, ler, partilhar livros, emprestar, dizer que é possível escrever um livro, dar livros de presente, deixá-los acessíveis em geladeiras postas nas ruas, num banco de praça, na cadeira do ônibus, tudo isso me soa como um fazer literário. E se fazemos é pra dizer, pegando carona na pergunta, que estamos literariamente e literalmente enfrentando a estupidez dos dias atuais. Entrando em outros universos guardados dentro dos livros para conseguir as respostas e armas para os enfrentamentos que são dentro e fora de nós. 

Uma lista de 10 livros

O que os olhos não vêem, Ruth Rocha
Vintém de cobre, Cora Coralina
O menino do dedo verde, Maurice Druon
O guardador de águas, Manoel de Barros
Grande sertão: veredas, Guimarães Rosa
Becos da memória, Conceição Evaristo
Quarto de despejo, Carolina de Jesus
Tudo nela brilha e queima, Ryane Leão
A revolução dos bichos, George Orwell
O morro dos ventos uivantes, Emily Bronte


Um poema 

Enquanto eles usarem as armas de fogo
Abusaremos das palavras
Jogaremos coquetéis de versos incendiários
Antes que eles venham com seus canhões e fardas sujas
Ocuparemos as ruas com a nossa poesia
Ocuparemos a periferia com a nossa prosa revolucionária
Enquanto eles derramarem sangue inocente
Contra atacaremos com rosas e livros
Enquanto eles vierem com a pólvora
Nos defenderemos com nossa arte e sonho de paz
Sejamos fortes irmãos
A poesia há de nos salvar
A poesia há de nos unir
Poetas de todo mundo, uni-vos
Atirem sons de lira
Cuspam poemas na cara do sistema
Amai-vos uns aos poetas irmãos...e assim venceremos.
Mataremos o sistema por dentro
Com sua própria vergonha de ser violento.

Poema Manifesto, Aglaison Di Almeida


Uma música 



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Argentina Castro tirou a Papoco do campo das ideias e colocou em prática. Pediu ajuda a família e a família se jogou junto com ela. Tia de 8 universos, cada um mais artista que o outro, e mais ainda quando querem lhe pedir alguma coisa. Filha do meio da mesma prole que a Cris. Mãe do cãopanheiro Marley e acabou de lembrar que precisa banhá-lo. Mestre em Antropologia. Escritora de poemas, contos, crônicas. Articuladora da Papoco de Ideias. Mediadora da Papoco de Ideias. A tia que bota moral, a chata. Afinal, alguém precisa fazer o trabalho sujo na Papoco de Ideias e sobrou pra ela por ser uma pessoa que não entende de paz! Aprendiz de crianças e feitiços. Faça maldade com ela, mas não com os seus. Chora mais que rir. A que lembra a Cristina que ela já pode ser adulta
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Cris Castro é atriz em início de carreira, corre pra lá e pra cá pra dar conta Começou filosofia, mas trancou. Atualmente é uma estudante de psicologia que não se entende. Filha mais nova da prole de seis. Educadora popular. Articuladora da Papoco de Ideias.  Mediadora da Papoco de Ideias. Vira criança na Papoco de Ideias, as crianças não a temem. Vai de casa em casa comunicando e convidando as crianças para as atividades. Fica vermelha de tanto pegar sol. Aquariana. Palhaça! Que bom! A que lembra a Argentina que ela pode ser criança.
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Taciana Oliveira é mãe de JP, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.