Hora antes de dormir - por Alessandro Caldeira


por Alessandro Caldeira__




Penso no final do ano. Se você não sabe, estamos perto do natal, e minha família sempre vem passar as festas com a gente. Eu acho legal e tudo, e até que me sinto feliz quando essa época chega. Todo ano eu fico contando os dias. É legal, sabe? À medida que o tempo vai passando, vai dando um friozinho na barriga.
É como a sensação de quando você está usando um daqueles balanços do parquinho, sabe? Alguém te empurra para trás, te coloca lá no alto ao ponto de ver a cidade inteirinha e aí descemos bem devagar, nesse momento você sente o friozinho no estômago, não sente?
O problema é quando sentimos essa sensação só na cadeira de balanço do parque, mas quando descemos, para aonde essa sensação vai? Sempre ficamos na expectativa de ainda estarmos bem. Algumas crianças não deveriam sair da cadeira de balanço nunca.
Não é o que acontece quando meus tios chegam, finalmente. Quer dizer, toda aquela minha vontade e tudo mais some rapidinho e desejo ficar sozinho novamente. Mamãe fica preocupada com o meu comportamento e sempre diz: “vê se se comporta. Não quero passar vergonha novamente”. Isso porque ela sabe que sempre serei uma “pessoa malvada”
O que mamãe não sabe é que eu nunca ataco ninguém, eu não sei atacar. Mamãe nunca me ensinou a fazer isso, eu bem que gostaria ao invés dela sempre me colocar acuado no canto daquela parede. Na verdade, quando todos os meus tios e primos estão aqui, eu me sinto como um animal que sempre se defende e tal.
Por exemplo, quando briguei com meu primo, eu não queria ter brigado, até o considero como um irmão e tudo, para falar a verdade. Mas é que ele sempre se gaba das coisas que a mãe dá de presente.
Eu sei que não foi certo e mamãe tem razão de ficar brava, só que não é justo. Eu acho que se a gente ganha um presente devemos ficar agradecidos por termos alguém que nos dê e tudo, não ficar pirraçando outros que não ganham como se fosse independente. É muita bobagem.
Mas eu sei que é a minha tia quem faz ele agir dessa forma, e aí peço desculpas e ele sempre aceita. Tenho que dizer que é um cara muito caridoso.
Depois, passamos algum tempo juntos conversando com a família, mas logo enjoo, principalmente quando meu tio comediante sempre quer nos fazer rir. É um standup muito do ruim, se quer saber a verdade. E olha, se tem uma coisa que não gosto é de gente que se faz de bacana e engaçado e essas coisas.
Sujeitos assim sempre querem nosso dinheiro ou esconder algum tipo de antipatia. E esse meu tio me dá nos nervos porque não consegue se esconder por muito tempo. É do tipo que se faz de bacana para te humilhar, com a desculpa que tem bom humor.
E quando alguém se ofende e demonstra como se sentiu, o figurão fica todo rechonchudo que nem olha mais para a tua cara, como se a pessoa é quem teve culpa de se sentir ofendida. Uma vez, eu falei para o meu tio “faz algo engraçado, tio”, mas como ele achava que sempre fazia algo engraçado, se sentiu mal com o que eu falei e ficou semanas sem conversar comigo. É um sentimental esse meu tio.
Mas olha, se eu tivesse que lidar apenas com esse meu tio comediante eu estaria feito na vida, só que ele compete com um outro figura: meu tio religioso. Quer dizer, ele só fala que é religioso para ter moral e falar mal de você na sua cara. Como se Deus tivesse dado carta branca para ser idiota.
Eu ainda não contei, mas teve uma vez que ele perguntou como eu estava de namorada (os tios sempre querem saber primeiro da sua vida amorosa só para ver se podem se orgulhar de você ou não), eu respondi que não tinha nenhuma. Só por isso ele soltou o verbo e começou a falar de suas experiências com as namoradas de antigamente.
Sabe, o que eu penso é que se essas tais namoradas são do passado, por que não deixar o nome delas em paz? Eu duvido que esse tipo de gente teria coragem de dizer na frente de cada uma dessas mulheres coisas do tipo: “na minha época eu era mais atrevido que você. Rapaz, eu peguei uma atrás da igreja com o pai dela perto da gente e ele nem viu.”
O pior de tudo é que meu tio queria que eu ficasse de risos com ele como se eu tivesse ligando para o que ele falasse, no fundo, eu acho que meu tio recebe pouca atenção da mulher e dos filhos, sabe? Mas eu não os culpo, se alguém já de idade não consegue respeitar nem seu passado, quem dirá o seu presente.
Mas só que chega o natal, e a gente sempre esquece dessas coisas. Eu acho engraçado, sabe? A gente sempre fala de lembrar das coisas que queremos nesse período, mas temos uma facilidade tão grande para esquecermos de coisas importantes.
O natal nunca me é a festa mais legal do mundo, quer dizer, a gente ganha umas coisas e tudo mais, até que é bacana, mas nunca ganhamos o que precisamos.
Meu natal sempre é da mesma forma, todo mundo tá comemorando e eu estou lá, no canto daquela parede porque fui “mal-educado com alguém que não deveria” e me sinto acuado mais uma vez, começo a imaginar que tipo de animal eu seria naquele momento enquanto todos estão comemorando.
Alguns até me pedem para sair da parede, eu minto que estou bem ali e até tento fazer algum comentário bem bestão “a parede me acomoda”. O que no fundo não era uma mentira, de tanto ficar na parede em cada natal, me acomodei com ela, tem um tio meu, o preocupado, que sempre me pergunta: por que está na parede, Rafa? Eu não respondo meu tio porque já tem um pouquinho de “traça” em mim.


II

Rafa, acorda... Rafael”. A Lari estava praticamente gritando o meu nome, eu até tinha escutado e tudo, mas naquele momento eu não queria atender ao meu nome.
- O que aconteceu? A Lari estava tão bonitinha, com um vestidinho roxo, todo florido, que até esqueci que estava começando a ficar chateado com as chamadas dela.
- Escuta! Eu estava falando com você, você não ouviu?
- Claro que eu ouvi. Ouvi sim. A lari não gostava quando eu mentia para ela, toda vez que isso acontecia, cruzava os braços e ficava me olhando com aqueles olhões como se quisesse ver alguma coisa por trás de mim. Olha, eu vou te falar, a lari m dá medo, às vezes. Mas não é um medo a ponto de querer fugir e tudo mais. É um medo bacana, entende?
Quer dizer, não é como o medo de quando meus tios chegam todo fim de ano, se quer saber a verdade. É um medo que dá vontade de ficar, como algo que te prende de tão interessante que é.
- Você tem ido à escola, Rafael?
- Tenho, sim. Mas esses dias eu nem fui.
- E por quê, não? Você sabe que a sua mãe não gosta dessas coisas de você ficar matando aula, além do mais, se você continuar assim, irá reprovar.
Olha, se tem uma coisa que a lari sabe ser é bancar a adulta, mesmo que tenha doze anos, é até engraçado.
- Eu sei disso tudo, lari.
- Papai diz que devemos ir à escola para aprendermos a sermos bons cidadãos.
- Tá bom. Eu sei o que seu pai diz.
Formar bons cidadãos é o cacete! O pai da lari só diz essas coisas porque é o diretor daquela espelunca, mas ele nem sabe o que se passa lá dentro. É um pilantra, se você quer saber.
Esses dias mesmo, um aluno estava sendo pisoteado no pátio da escola e ninguém percebeu. Como é que alguém não percebe quando o outro está sendo pisoteado?
A mãe desse garoto foi lá na escola no dia seguinte, você precisava ver o desespero daquela mulher reclamando sobre a atitude daqueles animais. Ela soltou o verbo e tudo mais, mas o sacana do diretor deu uma justificativa bem da vagabunda: “achei que eles estavam apenas brincando”, e ele ainda sugeriu para a mãe que ensinasse o filho a gritar da próxima vez.
Você tinha de ver a cara do menino. A mãe quase teve um ataque do coração com a resposta daquele idiota.
Fiquei pensando naquilo por horas e tentando sentir a humilhação que os dois devem ter sentido. A gente sempre se humilha com situações que não deveríamos sentir humilhados.
O que eu acho é que se alguém está sendo pisoteado, deveríamos, ao menos, levantar a pessoa do chão, não esperar ela gritar. Se esperamos o grito e tal, é vergonha de se ouvir o grito. Aí você levanta a pessoa só para ela não gritar mais.
O diretor é um bundão, se você quer saber a verdade. E aqueles alunos só estão aprendendo a serem como ele, isso sim.
- Você não gosta nem dos professores, rafa? A lari ainda estava me olhando com aqueles olhões, doida de curiosidade para saber se alguma coisa me interessava naquela escola.
- Até que gosto, mas só gosto de uma.
- Quem é? Me conta! Quem é?
A lari ficava toda eufórica quando ela estava prestes a descobrir algo que eu goste. Ela sempre diz que gostaria de me ver entusiasmado com alguma coisa que eu gostasse de ver, por isso ela fica fazendo essas coisas.
- Eu nem lembro muito bem do nome dela. Respondi assim, mas se você quer saber a verdade, eu lembro muito bem do nome da professora. Ela chama Célia, mas todos da sala a chamam de “japonesinha”.
A professora Célia é bem da simpática, se você quer saber, e está sempre carregando um livro na mão. Ela é bastante ligada em poesia, eu não tenho muita vocação para gostar de poesia. Não entendo muito sobre os poetas e tudo mais. Mas teve uma vez que ela leu para mim um poema do seu poeta preferido: Fernando Pessoa. A professora diz que Alberto Caeiro é seu melhor heterônimo.
A professora Célia é bastante atenciosa e lia da mesma forma, tanto que te prendia do começo até o fim da leitura. Ela é bacana. Sempre arranja uma forma de nos prender na história interpretando de uma maneira bem simpática cada personagem.
Teve uma vez que fui à casa dela porque tive de pedir emprestado o livro do Fernando Pessoa para um trabalho. A casa dela é bem bonitinha com alguns quadros de Van Gogh e Monet, ela diz que gosta de impressionismo porque “tem uma velha mania de recriar a realidade”.
- Oi, rafa! Como está? A professora chegou por trás de mim que até me deu um susto. Ela tinha um jeito estranho de andar, meio mancado, era bem engraçada.
- Oi, professora. Estou bem e a senhora?
- Estou bem, meu filho. Como estão seus pais?
A professora Célia tinha mania de falar “meu filho” quando queria que a pessoa se sentisse acomodada, confesso que eu não gosto muito disso, mas é bacana da parte dela.
- Estão bem. Quer dizer, o de sempre, né? Estão lá preocupados com as coisas.
- Entendi, rafa.
A professora Célia conhecia meus pais, sabia de suas preocupações comigo e o quanto eles tentavam de tudo para que eu fosse um bom aluno. Eu até entendo essa preocupação e tudo, sabe? Mas os pais não sabem muito o que fazer com os filhos quando estão querendo decidir a vida por nós.
- Gostou dos quadros? Eu tenho uma tendência em gostar de impressionismo por recriar a realidade.
- A senhora tinha me dito, professora. Mas confesso que não tenho muita tendência para a arte.
- Para o que você tem tendência, meu filho?
Mais uma vez ela me chamou dessa forma, já estava querendo sair logo dali para que ela parasse de me chamar daquele jeito. Só que eu estava mais incomodado era com a pergunta mesmo e tal. Eu sei, as pessoas querem que eu me sinta envolvido, mas toda vez que alguém pergunta isso para mim, sinto que vou logo ganhar um sermão.
- Deixa eu refazer a minha pergunta, rafa: do que você gosta?
- Eu ainda não sei do que eu gosto, professora. Quer dizer, não é que eu não goste de nada, mas a gente demora um tempo para descobrir e tudo mais. Esses dias, por exemplo, eu gostei bastante de ficar ouvindo música no meu quarto, mas hoje, não.
- Você é um garoto bem curioso, sabia? A professora deu um risinho bem simpático para mim. Mas discordo de ser curioso. Quer dizer, só porque eu não fico numa coisa só, eu sou curioso? Curioso é o cacete!
- Rafa, você ainda é novo, vai aprender que nem tudo é como você quer e precisará estar bastante atento na vida. Quem sabe se você se apegar a algo e realmente se interessar, aprenda isso, hein?
- Eu sei, professora. Eu sei disso. Estou tentando.
Não vejo sentindo nas palavras da professora Célia, não mesmo. Quer dizer, se você está protegido contra tudo e contra todos está tudo bem e você pode pensar em se apegar e tudo, mas a verdade é que ninguém se apega porque não querem responsabilidade. Quanta bobagem! Eu não me vejo separado assim das pessoas e das coisas, se você quer saber a verdade.
Se é assim, eu não deveria pensar em mais ninguém e nem conseguir nada para mim. Se quer saber a verdade, acho que não pensar em mais ninguém é uma atitude bem vergonhosa e ridícula, por isso todo mundo é covarde.
- Mas isso nem sempre é possível, professora.
- Explica-me, rafa.
- Por exemplo, esses dias eu saí lá para o centro e tudo mais. Logo que virei a esquina, tinha uma mulher machucada pedindo dinheiro para as pessoas, eu não tinha o que dar, sabe? Mas pelo menos olhei para ela. Só que o casal que estava atrás de mim nem sequer olharam, nem para dizer não, entende o que eu quero dizer?
- Seja mais claro, rafa!
- Professora, eu não acho certo as pessoas tratarem uma outra pessoa que está te pedindo ajuda como se fosse invisível. O que eu acho é que elas deveriam, pelo menos, olhar.
- E o que você quer dizer com isso, rafa?
- O que eu quero dizer, professora, é que às vezes a dor das pessoas tenha alguma possibilidade de ser amenizada ao serem percebidas e tudo mais.
- Você é uma pessoa que sente demais as coisas, meu filho. Tudo com muita intensidade. É preciso saber que não podemos mudar certos cursos que a vida nos expõe.
Intensidade. Eu não acredito que ela usou esse tipo de expressão quando o que essa palavra quer dizer mesmo, no fundo, é que você é verdadeiro. Quando você fala a verdade, a palavra correta a se usar é apenas “verdade”, mas nos escondemos usando variações das coisas.
- Eu sei, professora, disso eu sei. Mas não temos que mudar nada, professora. Basta apenas olhar.
- Nem todos tem a sensibilidade que você tem, rafa. Escuta, vou lhe dar um conselho: você é bastante inteligente e tem essa sensibilidade, só precisa fazer com que isso se externalize de forma positiva para a sua vida. Quem sabe a melhor maneira é aceitar o que a vida faz de você. Assim, você não irá cair no desespero.
- Sim, professora. Obrigado pelo conselho. Mas, desculpa, só que agora eu preciso ir.
- Ah, sim, meu filho. Vá! Fique bem. Você não iria levar o livro do Fernando Pessoa? Aliás, você me lembra muito dos poemas dele.
- Verdade. Obrigado por lembrar. Tchau. Até mais.
Eu peguei o livro e fui andando. Fiquei pensando no que a professora Célia disse sobre não cair no desespero e lembrei do Seu Mariano, um senhor que teve que se humilhar para conseguir um trabalho numa empresa bem grande e tal.
Enquanto passava na frente dela, imaginei o Seu Mariano morrendo lá dentro enquanto trabalhava. Seu Mariano se humilhou para entrar e foi humilhado até pela própria vida ao morrer justamente no lugar que lhe dava dinheiro.
O mais esquisito foram as pessoas perguntando quem era o Seu Mariano. As mesmas que trabalharam muitos anos com ele. Aquele Senhor só foi lembrado quando seu corpo estava fora da empresa. Não há forma mais humilhante de se morrer.
De repente, um homem todo desesperado apareceu no ônibus que eu estava. O homem estava contando da sua vida, tentando fazer um malabarismo bem tosco, mas era o único jeito de ganhar um trocado.
Uma senhora que aparentemente tinha a mesma idade do Seu Mariano resolveu dar um dinheiro para o homem. A velhinha humilde disse para o “menino” que o dinheiro serviria para ele comer alguma coisa.
Parece que o cara não gostou muito, ele agradeceu, mas se queixou: “obrigado, senhora, mas eu não sou menino, meu nome é Ricardo”.
Eu pensei que o cara poderia ter sido mais gentil com a senhora, sabe? Mas se você quer saber a verdade, logo pensei em Seu Mariano de novo e nas quantas vezes ele deve ter se humilhado sem ninguém dizer, pelo menos, o nome dele.
Seu Mariano “aceitou a vida como ela é” e morreu silenciosamente, sem nenhum desespero, dentro daquela empresa.
A lari, mais uma vez, estava me chamando pelo meu nome loucamente.

Continua...

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Alessandro Caldeira é jornalista, santista e nas horas vagas prefere postergar qualquer um desses títulos para se dedicar à literatura, música e cinema.