Publicar de forma independente foi um desafio | entrevista com Thiago Noronha

por João Gomes __






O mercado editorial nunca foi fácil para abrir suas portas aos novos escritores. Às vezes o faz por meio de antologias, organizadas por escritores consagrados que dão oficinas para formar novos autores. Publicar um livro de forma independente tem seus benefícios e percalços. Sobre este e outros assuntos bati um papo por e-mail com o escritor cearense Thiago Noronha, que está publicando seu primeiro volume de contos: O primeiro parágrafo das memórias de um louco. Thiago acredita no “reinventar da literatura” e pontua: “Há uma problemática, ao meu ver, de disputar espaço na disponibilidade das pessoas em consumir arte. A literatura é uma mídia antiga, talvez para alguns até ultrapassada, né?!

Thiago, a escrita para você é algo que acontece com bastante fluência. A partir de que instante começa sua paixão pela palavra? Conta um pouco o que você leu durante seus 29 carnavais.
Meu primeiro fazer literário de que lembro foi no 4º ano do ensino fundamental quando eu fiz um poema para o dia das mães, numa dessas atividades em sala de aula, e a escola enviou pro jornal e foi publicado. Minha família comprou vários exemplares do jornal e distribuiu entre os parentes. Alguns comentavam que eu tinha herdado a veia poética de um antigo patriarca. Ironicamente, eu escrevi muito poucos poemas na vida, tampouco consumo tal gênero. Sou um prosador. Um contados de história de mesa de bar. Amo criar cenários e personagens e situações e gosto de brincar com arcos narrativos. Acho que meu gosto por histórias vem muito de eu ter sido uma criança rato de videolocadora, daquelas dos tempos das fitas K7 que você balançava a caixa para descobrir se a ficha de disponível estava dentro.
A escrita é uma constante no meu cotidiano. Escrevo para contextualizar todos os dilemas do meu cotidianos, ou para ilustrar acontecimentos bizarros, ou dar vida ao que poderia ter sido. Tenho uma veia cômica, por vezes existencialista. Acho bonita a existência humana e escrevo para dar vazão a minha percepção sobre o mundo. Acho que também escrevo para que gostem de mim.
Quanto à literatura, li muitos dos clássicos brasileiros e alguns internacionais ocidentais. Gosto de Douglas Adams e Dostoievski, Saramago, Machado, Veríssimo, Sabino, Raquel de Queiroz, Ângela Gutierrez e meu autor favorito é Gabriel García Márquez. Vez por outra folheio Cem Anos de Solidão e ainda me assusto com tamanha genialidade. E trago muitos traços do realismo fantástico de GABO na minha escrita, assim como o sarcasmo absurdo de Douglas Adams. Atualmente tenho dado preferência a escritores cearenses e contemporâneos. Os últimos dois livros que gostei muito foram: O clube dos jardineiros de fumaça (Carol Bensimon) e Glória (Victor Heringer).

Você é um verdadeiro contador de histórias e não distante disso uma de suas paixões é o escritor colombiano Gabriel García Márquez. Como é seu processo de criação literária?
Não sou um escritor disciplinado. Sou de ter inspiração. A escrita me flui muito bem quando eu sento para escrever, por horas ganha vida própria e muda completamente a ideia inicial. Mas não consigo ter uma produção literária. Eu tenho uma conversa no whatsApp comigo mesmo (tipo, meu número) onde eu envio mensagens com inspirações: frases que ouço na rua, elementos de histórias contadas por alguém, devaneios da minha fértil imaginação. Eu acho que sou muito sensível e empático ao mundo, que é de onde extraio minhas inspirações. Estou sempre atento ao mundo, às interações, às conversas no ônibus... não sou daqueles que sai de casa com fones de ouvido, porque gosto de testemunhas a riqueza cotidiana.
Quando eu precisava entregar o projeto da minha dissertação, eu procrastinava escrevendo e esse momento me rendeu ótimos textos. Eu chamei de procrastinação-criativa.

Seu primeiro livro, O primeiro parágrafo das memórias de um louco, foi lançado recentemente. A quarentena lhe tirou a possibilidade de ter um lançamento físico e quais impactos se deram no contexto pandêmico a você como escritor?
Na verdade, a pandemia me estimulou a lançar o livro. Primeiro, eu fui contemplado num edital cultural de propostas online (audioleituras) e foi com esse dinheiro que eu consegui imprimir o livro. E com a pandemia e toda aquela aflição social, eu comecei a compartilhar os meus textos mais leves e afetivos e eu vi que muito mais gente estava lendo, talvez por estarem com mais tempo livre. Pensei que um lançamento agora poderia ajudar as pessoas por entrega-las um bom produto artístico para entretenimento e reflexão durante o isolamento e que mais tempo se teria para literatura, que é algo meio difícil na rotina das pessoas hoje em dia (pré-corona) com tantas mídias e afazeres como ir ao barzinho sextar.

Quais são as maiores dificuldades para se lançar um livro de forma independente? Antes de ter um livro, escrevendo em sites e colaborando em antologias, até que ponto você se considerava escritor com formação em administração?
Eu precisava muito publicar um livro físico para me sentir escritor. Era um desejo meu. A minha escrita sempre foi postada gratuitamente em redes sociais e em algumas plataformas de literatura: escambau, eagoracast e revista berro. Eu tinha feedbacks muito positivos, inclusive de pessoas da área de literatura, escritores e jornalistas.
Os meus contos e crônicas são partes muito importantes da minha personalidade, mas eu precisava formalizar isso, acho até que a não formação numa área artística ou de escrita me reforçava essa demanda. Eu acho que sou mais escritor do que gestor, mas eu gosto muito de trabalhar em projetos e em análise de dados também. Eu sempre gostei muito de matemática, jogos de raciocínio. Eu até acho que a minha literatura é muito matemática (harmônica e geométrica).
Publicar de forma independente foi um grande desafio. Eu não sou bom em design e fiz eu mesmo a capa, com a contribuição da ilustração de um grande amigo: Mauro Reis. Vi vários vídeos na internet sobre diagramação e processo de publicação e envio de livros via correio. Foi doloroso, mas gratificante. Eu percebi que me deu uma sensação maior de que aquela obra era minha. TODA MINHA. Até nas imperfeições.
Eu quis muito uma parceria com uma editora. Tentei muito. Mas como disse, não sou um escritor disciplinado, então meus manuscritos pecavam em revisão e até sequência de organização dos textos. Recentemente fiz uma planilha de excel (cá está o gestor) com meus textos, agrupei numa temática próxima, e vi que faria sentido e até ficaria bonito publicá-los assim. Então esse processo de organização também foi importante para melhorar o meu conteúdo; dá-lo mais sentido e não ser só textos soltos e aleatórios.
Ironicamente, quando eu já tinha fechado contrato com a gráfica, uma editora me deu retorno positivo com interesse de me publicar. Mas a proposta não valia tanto a pena para desistir da autopublicação. E eu tinha pressa de lançar e distribuir o livro em Fortaleza, pois estou de mudança da cidade. É muito desgastante o processo de envio de manuscritos a editoras. É um mercado muito complexo também para emergir, mesmo os escritores talentosos.

Na capa de seu livro seu nome está como numa catalogação de biblioteca ou mesmo de citação em referência acadêmica: Noronha, Thiago. A partir disso, junto a todo seu estilo criativo, quais dicas você compartilha a um jovem escritor para alcançar o êxito na organização de um livro?
A referência acadêmica é uma brincadeira, pois muito dos meus amigos me chamam por Noronha. E eu estou, nesse momento, imerso em leituras acadêmicas por conta do mestrado. Então... pareceu fazer sentido. Foi algo de supetão, inclusive. Eu acho que um jovem escritor tem que achar seus leitores. Eu já tenho umas cem/duzentas pessoas que eu sabia que se interessariam no meu livro físico. Não de comprar por comprar (tipo meu pai), mas comprar pra ler. Mas foram cinco ou seis anos para formar essa lista de pessoas e mantê-los perto de mim; foi um desafio. Minha dica, se não for ousadia, é que escreva sobre a sua realidade, busque inspiração na sua realidade e ache as pessoas que se identificam com a sua realidade. Quanto à organização, buscar essas parcerias de publicação em sites, que te agregam nome e leitores, participar de oficinas de escrita (foram-me importante) e ter amigos escritores para troca de leituras críticas.

Publicar um livro fortalece o cenário literário contemporâneo. Produtor cultural e professor universitário, como você percebe a literatura local de sua cidade, Fortaleza?
Eu acho riquíssima. Eu amo Antonio LaCarne, Socorro Acioli, Lisiane Forte... E eu adoro o fato de que eles são acessíveis. Que você encontra esses nomes facilmente nos eventos literários.
Há uma problemática, ao meu ver, de disputar espaço na disponibilidade das pessoas em consumir arte. A literatura é uma mídia antiga, talvez para alguns até ultrapassada, né?! Meus amigos e observo isso em muita gente nesses tempos, consome uma infinidade de histórias/narrativas, mas em formatos de redes sociais, vídeos, filmes, séries. E a cena literária de Fortaleza também sofre desse mal; dos índices ainda baixos de consumo de literatura por parte dos cidadãos, se comparado a países similares ao nosso, como Argentina. Mas eu acredito muito no reinventar da literatura e torço muitos.
Esses nomes já citados e outras tantas iniciativas, como as bibliotecas comunitárias, me revigoram e me fazem acreditar na literatura local e seu fortalecimento, inclusive na produção cultural dentro dessa linguagem.

Quanto ao gênero conto, onde sua prosa mais se situa, o que seria para você “fina literatura” e com qual intensidade você acompanha a produção de contistas no contexto nacional?
Eita! Foi ousado falar em fina literatura, né?! Mas eu só acrescentei isso quando recebi o prefácio escrito pelo Renato Abê que me deixou vaidoso quanto ao livro. Eu não sei exatamente responder o que é fina literatura, para mim, inclusive. Algumas pessoas comentam nos meus contos publicados coisas do tipo: “nossa, me prendeu na leitura”, “talentoso”, “emocionou”, “ri muito”. Eu acho que a riqueza em uma literatura está na quantidade de emoções que um escritor consegue entregar. Eu acho que tem muita criatividade nos meus contos, boas viradas de história. Acho que só o leitor poderá dizer se trata-se de um erro de percepção meu, mas alguns leitores já disseram que não, né?! Então acho que tô me confiando nesse retorno deles. Ahhh, mas também já fui premiado em algumas antologias. Prêmio Sesc Ceará de contos, por exemplo. Algo mais formal e burocrático enquanto certificação, talvez.
Outra coisa que engrandeço na minha literatura é a diversidade de temas, geografias e tempos. Acho que construo personagens que é fácil sentir afeição por eles. Além de ser uma escrita, na medida do possível, democrática. Eu consigo que pessoas de gerações e trajetórias muito distintas gostem de um mesmo texto. Eu consigo escrever com vocabulário que meu pai, alguém de menos estudo formal, entende. Acho que são alguns elementos que me levam a acreditar muito na riqueza da minha literatura. E eu espero, sinceramente, que não parece soberba.
Minhas referências contistas no Brasil, são: Rubem Fonseca e Moacir Scliar. E mais contemporâneos eu li: . Sim, eu consumo, frequentemente, contos, geralmente os premiados.

Na abertura do seu conto “Amores de Julho” há uma observação ao leitor: “[essa narração pode ser um tanto vulgar para certos leitores; siga por sua conta. Divirta-se ou pule para o próximo texto”. O realismo visceral do mundo LGBT e tecnológico está muito presente ali, mas desejo saber de você: como percebe o retorno crítico aos novos escritores?
Olha, eu não tenho problema com retornos críticos, eu acho. Esse conto específico que me fez querer alertar o leitor é porque ele é, como você disse, visceral. E eu, conhecendo os meus leitores, sabendo que minha tia avó beata vai querer ler o livro porque tem textos ambientados nos seringais amazônicos onde minha família viveu por anos, sei que para esses leitores esse conto é até constrangedor. Eu não vejo problema em tratar o mundo LGBT, inclusive ele está presente em outros contos do livro, em primeira pessoa inclusive, mas nenhum deles traz uma passagem como “pisca o cuzinho pra mim”. É so much para a minha tia avó. Talvez o alerta foi um pedido de desculpa antecipado para a parte da família mais conservadora, reservada e antiquada, talvez foi uma forma de criar expectativa e curiosidade no leitor, mas eu realmente quis colocar esse aviso lá. Sempre que eu revisava o livro eu pensava em excluir esse texto, por ser meio que o ápice, na minha escrita, da agressão ao senso comum heteronormativo e puritano, mas, ao mesmo tempo, eu adoro a forma como o texto tá escrito e eu acho que ele tinha que compor essa obra tão cheia de contrastes e múltiplas sensações, incluso o constrangimento e o pudor sexual da minha tia avó.
Talvez eu fique com vergonha quando alguém me perguntar desse texto em especial. Eu não sou muito de falar de sexo e é um texto um tanto íntimo, né?!

Em tempos de isolamento social, com liberdade para leituras e reflexões, como Thiago Noronha deseja que seu primeiro livro chegue ao público?
Eu espero que sirva como uma reflexão calorosa. Que emocione e faça rir. Eu quero que muitos que ainda não me leram se surpreendam e me mandem mensagem nas redes sociais sobre o livro.

Em uma de suas colunas do site Escambau você afirma que “A vida e o viver necessitam de testemunhas de seus grandes acontecimentos insignificantes.” O texto se enquadra mais ao gênero crônica e passa uma mensagem. Mantendo ou não um coluna em site, revista ou jornal, com que frequência você escreve crônicas?
O Primeiro parágrafo das memórias de um louco também é formado por crônicas. Eu até tenho certa dificuldade em distinguir os gêneros. Eu sinceramente nem lembro desse trecho e de que texto ele é. Mas parece com algumas frases de efeito que eu uso pra fechar textos.

Técnica e estilo são ingredientes importantes para a escrita de uma narrativa. Você possui algum projeto nos gêneros novela ou romance? Quais seus próximos trabalhos na escrita e produção cultural?
Eu tenho um romance escrito, cerca de 240 páginas A5. Penso em publicar se eu tiver um bom retorno dessa minha primeira publicação em formato de contos. Eu gosto muito da história e da estética. É um realismo fantástico que acompanha duas gerações de uma importante família em um sertão cearense fictícios inspirado no maciço de Baturité, geografia que sempre frequentei e frequento até hoje.
Eu acho que ainda publicarei um segundo livro de contos antes de escrever um segundo romance, mas eu tenho desenhado uma história e adoraria evoluir nela, sobre três homens gays com histórias entrelaçadas. Já tenho algumas partes escritas, inclusive. Tô aguardando o momento.
Atualmente não tenho previsão de voltar a atuar enquanto produtor cultural pois estou envolvido profissionalmente em outra área.





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*** Thiago Noronha nasceu em 1990 em Fortaleza. Escreve sobre o cotidiano, revisita memórias da infância, conta de suas viagens Brasil afora e relembra paixões. Diz-se dono de uma escrita cômico-afetiva cheia de críticas sociais. 


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João Gomes (Recife, 1996) é poeta, escritor, editor criador da revista de literatura e publicadora Vida Secreta. Participou de antologias impressas e digitais, e mantém no prelo seu livro de poesia.