Sextas-feiras, almas e Drummond | Thiago Noronha


por Thiago Noronha__


Que sabor doce o das sextas-feiras! Ou costumavam ser, quando os finais de semana eram sinônimos de não ter aula e de não trabalhar. Os dias de ir à praia e de dormir até tarde estavam por chegar. As festas madrugada afora. O cinema. As sextas-feiras costumavam ser a véspera de muitas felicidades. Talvez o neoliberalismo e as novas leis trabalhistas matem os finais de semana. Talvez as mesas de almoço de família fiquem incompletas porque alguém teve que trabalhar no domingo sem receber dobrado. Mas esse não é um texto político sobre as maldades do capitalismo, é um texto sobre as sextas-feiras.
Minha professora de literatura, no ensino médio, costumava repetir sempre que entrava na sala nas primeiras horas das tardes das sextas de 2007: “Hoje é sexta-feira, e os bares estão cheios de pessoas vazias”. Essa frase é de Carlos Drummond de Andrade. Claro, adolescentes de dezesseis anos não entendiam do ecossistema de bares e nem de pessoas vazias. Eu saía do colégio no começo da noite de sexta e ficava olhando desde o ponto de ônibus para o bar da esquina da Duque de Caxias. Estavam cheios. Seriam pessoas vazias?
Aos vinte e sete, talvez eu saiba sobre bares. Conheci vários. Dos caríssimos, com seus drinks frutados e bonitos de fotografar, aos que vendem doses de cachaça em copinhos plásticos de café por cinquenta centavos. “Sou de andar do alto clero ao baixo meretriz” ― uma vez eu me apaixonei, num bar, por alguém que disse essa frase de efeito. Paixões ébrias.
Dos bares com banheiros decorados e com fio dental e enxaguante bucal na pia de mármore, aos cujo vaso sanitário não tem água e você mija numa esponja, no azulejo encardido, um recado escrito: Proibido cagar.
Aos vinte e sete, talvez, eu entenda o que Drummond quis dizer com pessoas vazias. Mas não concordo. Não acho que como uma pessoa gasta sua ociosidade nas sextas-feiras pode determinar a densidade de sua alma. Tampouco a bebida, enquanto fuga mental, me parece mais questionável que tantas outros métodos anestésicos. Viver é doloroso, alguns bebem para amenizar, alguns vão à igreja. Almas igualmente belas. Talvez, talvez.
Chico Pinheiro, o apresentador do Bom Dia Brasil, todas as manhãs de segundas-feiras nos saúda com “Hoje é segunda-feira, FORRRRÇAAA!!!”. E nas sextas, com o mesmo exagero de erres: “Hoje é sexta-feira, GRRRRAAAÇAS A DEUS!!!”. Certamente, Deus também curte as sextas-feiras. Será que Deus dá plantão nos finais de semana? Será que já aprovaram as flexibilidades trabalhistas celestes? Será que Deus também odeia a rotina exaustiva anunciada pelo amanhecer das segundas? Como nos tornamos uma espécie que odeia uma maior quantidade de dias da semana do que os aprecia?
A segunda começa a pesar já na noite de domingo. O sabor agridoce das videocassetadas do Faustão. Um lamento melancólico sobre acordar cedo e disposto no dia seguinte.
O carinha que vende churrasquinho de rua na esquina aqui de casa, em frente ao supermercado, folga às terças; desde antes das reformas trabalhistas que mataram o almoço de domingo das famílias. Mas supermercado e posto de gasolina precisam funcionar no domingo, né?! Faz sentido. O que não faz sentido é abrir mão dos domingos sem receber a mais por isso. Mas esse texto não é sobre política, é sobre sextas-feiras. Embora esteja um pouco difícil para mim separar as coisas: os textos cômicos despretensiosos e os manifestos políticos.
Voltando ao carinha da barraca de churrasquinho e à sua folga às terças. Um dia perguntei a ele por que a folga era na terça e não na segunda, como fazem muitos dos vendedores ambulantes que precisam sacrificar o final de semana em prol das altas vendas causadas por maior número de pessoas com tempo livre para ir à praia, ao parque, ao supermercado ou simplesmente às ruas. A resposta foi no seguinte sentido: nas segundas, as pessoas estão chegando do trabalho quase se arrastando, quando passam pela barraquinha de churrasquinho. Muitas jantam lá pela total incapacidade de chegarem em casa e prepararem uma janta decente. Nas segundas, devido à menor quantidade de horas dormidas na noite anterior, visto que o sono demorou a chegar por ter acordado tarde no domingo, ou ter cochilado pós-almoço de família, as pessoas só querem chegar em casa e dormir. Segunda-feira é um ótimo dia de vender refeições rápidas e práticas nas proximidades dos pontos de ônibus. Cortar cebolas numa segunda-feira? No máximo há disposição de fazer um miojo. Segunda-feira, o dia oficial do miojo. FORRRRÇAAAAA!
Quando eu morei no Rio, tive o prazer de ir muitas vezes ao samba do trabalhador, que acontece na segunda à noite. Acho que se refere justamente ao trabalhador ambulante, que sacrificou o domingo para vender chá mate na praia e, como todo filho de Deus, de alma vazia ou não, ele quer fervo uma vez por semana. Então, criou-se o samba do trabalhador na segunda-feira. Sempre me pareceu um deboche. Uma afronta ao comum. Vamos farrear na segunda, SIM!!!
Por falar nos cariocas, concluí, em minhas observâncias da jovem classe média boêmia com que tive contato ao trabalhar num escritório em Jacarepaguá entre 2014 e 2016, que um bom final de semana carioca funciona da seguinte forma: chega do trampo sexta à noite, dorme até uma da manhã, entra na balada às três, vai da balada para à praia às oito, vai da praia para casa entre duas e quatro da tarde, dorme até meia-noite, acorda, entra na balada às duas, sai da balada para praia às nove, vai da praia para casa de familiares às cinco da tarde, come como um porco, dá a desculpa do cansaço para ir embora antes das sete, dorme enquanto assiste as videocassetadas do Faustão, acorda bronzeado e disposto nas manhãs de segunda. O que diria Drummond sobre a alma dos cariocas?
Uma sexta-feira, algumas semanas atrás, foi muito divertida, para mim, aqui em Fortaleza. Vou tentar contar o passo a passo. Primeiro, fui à Praia de Iracema descolar um fumo. Deparei-me com uma festa organizada pelo pessoal do curso de teatro da Universidade Federal em prol de arrecadar fundos para a montagem de uma peça. Gente, se vocês souberem de uma festa organizada por pessoas do teatro, apenas vão. Se os ETs viessem à Terra e quisessem ir a uma festa, eles não iriam num show do Maroon 5 ou num forró de turista, eles iriam curtir uma festa do pessoal do teatro, porque, certamente, não é fácil de se encontrar algo assim no universo, e toda civilização deve ter seu próprio Maroon 5 já igualmente desgastado.
A festa do pessoal do teatro era muito absurda. Pessoas fantasiadas e vestidas de formas tão autênticas e aleatórias que fariam Drummond chorar. Bijuteria de talheres, um vestido de embalagens plásticas do arroz Tio João, capacetes de astronauta como um acessório qualquer. Almas absurdas, almas artísticas. Dalís! As proximidades da festa com o São João fez iniciar-se uma quadrilha junina, e quando gritavam “OLHA A COBRA!”, as viadas respondiam: “ADOROOOOO!!!” O que diria Drummond sobre as viadas? Conseguiria ele, com sua alma antiquada e moralista, apreciar tão geniais manifestações de personalidade? Almas livres, almas leves, almas poéticas.
A festa do teatro se acabou porque começou uma chuva grossa e todo mundo teve que se amontoar numa marquise. Um cheiro de gente. Gente molhada. Um cheiro de suor e cigarros e álcool barato.
Dois policiais correram do calçadão à marquise para se protegerem da chuva junto com o pessoal da festa do teatro. Dividindo tão limitado espaço, ficaram ali se encarando mutuamente. Os policiais olhando curiosos as vestimentas e estilos e os festeiros tentando não transparecer a raiva ideológica às forças militares de opressão social. E a chuva não passava. “Ah se os polícia não tivessem aqui, eu ia até acender um pra apreciar a chuva”, falou alguém camuflado pela multidão. Os policiais riam e coravam das humoradas indiretas das gays: “adooooro fardados!”.
Os boêmios e os policiais debaixo da marquise esperando a chuva passar. Almas humanas. Cúmplices da mesma solidão existencial. Igualmente apreciadores dos dias de folga e das confraternizações. A chuva passou. A festa recomeçou. Os policiais voltaram às suas rotinas pouco humoradas. Coloridos e cinzas. Segundas e sextas. Drinks com kiwi e doses de cachaça servidas em copos plásticos para café. O belo contraste que torna essa existência tão interessante de observâncias e que inspira tantos poetas, como Drummond.
PS: o Google me informou que a frase “Hoje é sexta-feira e os bares estão cheios de pessoas vazias” não é do Drummond e sim de um homem chamado Ezequiel Sisnando Xenofonte. Não sei se minha professora de literatura estava confusa, pouco provável, ou minha memória que me traiu desde 2007. Malditos cigarros de artista! 

* Este conto integra a obra O primeiro parágrafo das memórias de um louco, de Thiago Noronha.
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Thiago Noronha nasceu em 1990 em Fortaleza. Escreve sobre o cotidiano, revisita memórias da infância, conta de suas viagens Brasil afora e relembra paixões. Diz-se dono de uma escrita cômico-afetiva cheia de críticas sociais.