Enfim, Sonhar | Adriano B. Espíndola Santos

por Adriano B. Espíndola Santos__




Passava das onze, e Fernando relutava a dormir. Lá fora, o céu de plena primavera ainda brilhava, com estrelas densas, cintilantes, que dissipavam qualquer desejo de sonhar em vão. Sonhar, portanto, para ele, era perda de tempo; precisava agir, e não se continha mais de tanta ansiedade.

Pensava na mãe, em que lugar havia se escondido; ou se, ao menos, estava viva. Bolava os planos mais mirabolantes, de correr o país em posse de sua perua vagabunda, desconjuntada. Maria, a esposa zelosa, dizia que a Comboza, como era apelidada, pararia, mais cedo ou mais tarde, em alguma sucata; não aguentaria o tranco. E não falava isso para desanimá-lo; pelo contrário, havia o receio de piorar a situação; que, se fosse de cair no mundão, que o fizesse num veículo “de responsabilidade”.

Fernando se agarrava, somente, a poucas informações, angariadas com alegados familiares distantes; de que a mãe era natural de Bom Jesus, no Piauí; que ele teria nascido às escondidas, nos confins de uma fazenda denominada Fausto; que a mãe se chamava Jesuína; e que, por obra do destino, pelas dificuldades vislumbradas, teria sido entregue, no mesmo ato, a um morador da localidade, de nome Raimundo Alencar.

A noite, enfim, quedou longa e distante, qual a imaginação na mãe. Não pregou os olhos, mais uma vez. Maria, essa sim, se preocupava, porque o homem, arrimo de família, precisava trabalhar, ter uma vida com aparência de normalidade; do contrário, com dois meninos pequenos, amargariam as desventuras da miséria, de se verem irremediavelmente desamparados.

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Na casa dos Saraiva, Fernando recebeu educação; mais que isso, amor. Não podia se queixar do abandono, porque dona Mariinha Saraiva, mesmo sendo humilde, e não podendo gerar seu próprio rebento, lhe dera “tudo do bom e do melhor”. Teve certa paz para seguir, concluindo, portanto, o ensino médio e arranjando trabalho na fábrica de algodão, recém-criada em Brejo Santo, no Ceará.

Fernando ficava encasquetado com o fato de ter parado no Ceará. Mariinha, a quem chamava de mãe do coração, relatara uma história crível, de que Raimundo Alencar possuía laços em Brejo Santo e, sendo parco dos fundamentos para a sobrevivência, resolveu entregá-lo à Santa Casa de Caridade, cuidada pelas irmãs de Maria, uma congregação caridosa, que, por longos anos, se dedicara, sobretudo, aos cuidados às crianças carentes. Não recebiam órfãos. No entanto, abriram a exceção, para lhe darem, de pronto, à senhora Mariinha, que não possuía filho e era doida para criar um só seu.

Mariinha era devota de Santa Rita de Cássia, amava e ansiava a maternidade, que seria a razão de sua vida. Mas, por razões desconhecidas, ela e o marido Luiz não conseguiam gerar. Importante mencionar que Mariinha, por obra e graça divinas, estava no exato momento em que o menino Fernando fora deixado na Casa de Caridade. Era voluntária nos serviços de zeladoria e atenção às crianças. As freiras sabiam de sua maternal intenção, e não tiveram dúvidas ao confiar a sua criação à boa senhora.

Conforme a carta, com letras atrapalhadas, colocada pela genitora numa brecha do embrulho, o menino devia se chamar Fernando, em homenagem ao avô materno. Não havia menção a sobrenome.

Inclusive, os residentes de Bom Jesus alegavam que Jesuína seria um pseudônimo inventado pela genitora, para não ser descoberta; e confirmavam a ideia pela razão de não ter, na circunscrição do distrito nascedouro, uma mulher com esse nome.

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Fernando, apesar de possuir somente o ensino técnico em agricultura, era autodidata, homem de inteligência invejável; conhecedor de geografia e história como ninguém. Teve como tutor nada menos que Frei Eduardo, um clérigo que se fixou no sertão, vindo da Alemanha Oriental; na verdade, com autorização para sair, para pôr em prática o evangelho.

Num dado momento, Fernando achou que deveria seguir a vida religiosa. Entrou para os estudos de filosofia, no seminário, mas logo viu que não dava para o negócio, sendo atraído pelos olhares faceiros de Maria, uma vizinha muito ditosa e bonita. Há quem diga que Frei Eduardo o encorajou a sair do seminário, porque, ali, “a vida devia ser inteiramente dada ao Senhor; e Fernando não tem essa aptidão”.

Pouco mais, aos dezenove anos, sentiu o verdadeiro chamado para se embrenhar no sertão; parecia que seu coração nunca houvera saído dali. Conseguiu, a muito custo, comprar uma terrinha, de dois lotes, construiu uma casa e arranjou sua família – Maria já esperava o primeiro filho.

Mariinha, mesmo doente, visitava o filho com frequência e, além do amor desmedido, levava os mantimentos de que necessitava. Devagar, com o andor e vontade, Fernando se estabilizou, com as plantações de feijão e milho, que iam de vento em popa.

O segundo baque foi saber que a mãe de coração piorava, dia após dia, acamada, dependendo de ajuda até para andar. Mudou-se, de mala e cuia, para a casa da mãe, onde ficou por seis meses. Mariinha, com oitenta e nove anos, morreu qual um passarinho, na madrugada; como se diz, teve a morte predestinada aos santos. Se sofreu, com o câncer que se descobriu após os exames, Fernando não tomou conhecimento; ela alegava, mansa, que sentia um pequeno desconforto abdominal – essas eram as suas palavras. “Dona Mariinha decerto era uma santa… As dores, em consequência do câncer, são lancinantes. Um ser humano comum não poderia suportar”, acrescentou o médico.

A casinha que a mãe deixou fora doada às irmãs da congregação de Maria, como forma de gratidão; por desejo expresso. Os bens pessoais, aparelhos domésticos, poucas joias e um oratório, ficaram com Fernando, que não via motivo, por enquanto, de deles se desfazer.

Agradecia, conformado, o dom da vida da mãe de coração, uma mulher verdadeiramente santa, que dedicara a sua jornada terrena aos mais necessitados. Essa era a lição e a herança possível.

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Maria, então, meio desconfiada, lançou a ideia de venderem os pertences de dona Mariinha, para comprarem o tal “veículo de responsabilidade”. O dinheiro não comportava. Fernando, não vendo saída, vendou também a Comboza, completou com alguns tostões guardados e, assim, conseguiu comprar um furgão usado, mas em bom estado.

Cortaram o sertão, desde Juazeiro do Norte a Bom Jesus, atrás de alguma notícia. Passaram uma semana instalados numa pousada de beira de estrada. Gastaram o que não podiam. Correram os principais pontos, como a Igreja Matriz de São Pedro Apóstolo, e os armazéns mais antigos da região. Por sorte, localizaram nos documentos da igreja uma senhora de nome Raimunda Jesuína, que, segundo o velho pároco, era mais conhecida como Jesus. Talvez o engano quanto ao nome fosse em razão da designação popular, ser chamada de Jesus, ao invés de Jesuína.

Dita senhora morava a poucos metros da Matriz; por isso, Fernando, Maria, Fernandinho e Felipe foram a pé, ainda que trêmulos, vacilantes, com o que poderia acontecer. Bateram à porta e uma senhora, de seus cinquenta anos atendeu; não era, seguro, a sua mãe. Fernando havia completado, no último dia 19, cinquenta e cinco anos. A senhora, de nome Creuza, recebeu-os cismada. Não deu muita confiança, mas revelou os seguintes dizeres: “Essa senhora morou aqui, de fato, mas hoje está para as bandas de Santa Luz”. E não falou mais.

Prontamente, arrumaram as bagagens e saíram para a nova cidade. Não havia onde repousar. Conseguiram, com insistência, se arranjar na casa de uma moradora, dona Delfina, que recebia, quando estava de bom humor, os viajantes. Fernando prometeu-lhe que não passariam mais que três dias. Nem bem chegaram, foram novamente à igrejinha local, à procura de indícios. Uma funcionária, bastante idosa, disse que não conhecia ninguém com tal nome, e que procurassem informações na prefeitura. O local estava fechado, contudo um passante, atencioso e disposto, levou os viajantes à casa da suposta Jesuína.

Para a admiração de Fernando, experimentando um calor inefável no coração, a senhorinha estava na calçada, numa cadeira de balanço, olhando o movimento. Logo se levantou para cumprimentá-los: “se acheguem!”. Não desconfiou, no momento. Fernando, com muito cuidado, disse que vinha de Juazeiro do Norte, à procura de sua mãe, e perguntou se ela conhecia alguma senhora de nome Jesuína. A mulher coçou a cabeça, pensou, e respondeu que sim: “a própria”. No ato, desandou a chorar, lembrando do passado. Fernando a abraçou. Quedaram assim, sem dizer palavra à toa, por longos tempos. “Você é Fernando, nascido em 65?”. “Sou sim, mãe!”.

Nesse dia, Fernando dormiu e sonhou. Já havia esquecido de sonhar. Achava que sonhar era projeto para pessoas tranquilas; resolvidas. Agora, era uma delas.


*Fotografia: Tony Charles




Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance Flor no caos, pela Desconcertos Editora; e em 2020 o livro de contos, Contículos de dores refratárias, pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em diversas revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir - sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.