Nadando contra a corrente, conto de Dias Campos

 por Dias Campos__





        Já fazia um bom tempo que Ricardo e Helena queriam passar um feriado prolongado em um hotel fazenda. Ora, como se aproximasse o Carnaval, e porque folia não combinasse com o casal, pesquisaram bastante e conseguiram encontrar um pacote bem convidativo.

Mas só depois que depositaram o sinal é que resolveram tornar pública a novidade. E já se viam por entre o verde, as flores, a brisa e a mesa farta do interior; nadando na piscina, andando de charrete, praticando tirolesa e treinando arco e flecha.

Se bem que estivessem ansiosos, o tempo não demorou muito a passar, e o casal pegou a estrada ainda na madrugada.

O trânsito que havia, insignificante para os padrões a que estavam acostumados, contribuiu para que a viagem acontecesse sem tardança. E a cidadezinha logo apareceu.

Chegaram a tempo de tomar o café da manhã, e não desperdiçaram esse direito.

Como comera além da conta, Ricardo sentia-se estufado, e preferiu caminhar para fazer a digestão. É claro que convidou Helena para passear, mas como a recusa foi peremptória, ele nem ousou contra-argumentar. E quem dos mortais conseguiria dissuadir uma gata de tomar o seu sagrado banho de sol? 

Assim, foi até a recepção e informou-se sobre as opções de passeio. 

Disseram que a trilha norte, a mais longa, levaria a uma linda cachoeira. E esse detalhe foi suficiente à sua escolha.

Como o hotel estava lotado, Ricardo não foi o único a querer embrenhar-se na mata. Assim, ou topava com um hóspede que regressava para a sede, ou era alcançado por outro que andava mais rápido. E quando isso acontecia, refreava o passo e o deixava passar.

Os ponteiros já beiravam as onze horas; e o calor, sublimando o orvalho da madrugada, emprestava à trilha um aspecto místico, que tocaria até o mais impassível dos andarilhos.

Depois de quase trinta minutos de caminhada, Ricardo enfim chegou ao destino. E a visão de que passou a desfrutar fez valer a pena cada tropicão, arranhão ou picada que levara, pois a cascata era imponente, a água, límpida, e não se viam garrafas pet nem outro lixo qualquer represado.

Ocorre que, por mais educadas que fossem, as treze pessoas que ali já se encontravam não comungavam com a sinfonia que Ricardo idealizara. Ele queria escutar, apenas, o absorvente precipitar das águas e o mais tocante dos piares.

Mas as conversas e risadas paralelas a cada passo o arrancavam da paz que tateava. Assim, achou melhor afastar-se, e decidiu seguir rio abaixo.

Quando já não mais via nem ouvia a queda-d’água e as pessoas, Ricardo resolveu parar. E uma pedra que ficava na margem do rio foi eleita como assento.

Como não houvesse muitas árvores ao redor, o sol incidia invencível sobre a corrente, o que por vezes ofuscava quem se recusasse a menear a cabeça. 

Quis refrescar os pés na água gelada. Mas no mesmo instante em que desamarrava o tênis do pé direito, seus olhos se detiveram em um pedaço de pau submerso. 

Desviando do reflexo que os raios do sol produziam, percebeu que aquele pau era, na verdade, um peixe, e bastante parecido com uma truta. 

E em voz baixa desejou ao peixe que tomasse cuidado, pois o rio nesse ponto não era profundo, e se ele ficasse parado por muito tempo, um gavião poderia vê-lo e o agarraria para o almoço.

Mas como o peixe não desse atenção, e como a curiosidade aumentasse, decidiu inclinar a cabeça para melhor observá-lo.

Depois de alguns segundos de atenta análise, Ricardo concluiu que o peixe só parecia estar parado, pois, como o salmão, ele precisaria chegar até a cabeceira para desovar. 

Mas como a correnteza naquele ponto era muito forte, o esforço brutal que o peixe fazia servia apenas para mantê-lo no lugar.

Por ser o peixe robusto, Ricardo resolveu apostar consigo mesmo que em cinco minutos ele venceria essa dificuldade e seguiria rumo à nascente.

Quando o ponteiro do relógio alcançou a marca dos treze minutos, o peixe, exausto, finalmente se deixou levar pela corrente, o que decepcionou o apostador.

Ricardo não pôde ver, mas o vencido voltaria a nadar ao longe. Desta vez, porém, sem nenhuma dificuldade, pois seguia o curso das águas.

Haveremos de notar que a natureza é mesmo sábia. Um fato simples, corriqueiro, e que pode passar despercebido para a maioria das pessoas, pode valer mais do que um curso inteiro de filosofia. 

E o que teríamos a dizer sobre o fato que Ricardo acabara de presenciar?

Bem, na terceira infância, quando cursava uma escola particular, sua pouca estatura, somada a um inexplicável gosto pela farda, impunham a Ricardo inúmeros dissabores. Por óbvio que seus coleguinhas de classe volta e meia se rebelavam contra o seu pretenso direito divino ao comando, ridicularizando suas ordens, pedidos, ou simples opiniões. 

E como àquela época a luta contra o bullying ainda não se firmara, Ricardo não tinha alternativa senão a de engolir a seco as graves consequências das muitas insubordinações.

A complicar essa situação de reiterada humilhação e revolta, Ricardo ainda tinha que conviver com um amor que nascia por certa garota. 

Mas como não poderia deixar de ser, além de sua musa ser um tanto mais alta, ela sequer supunha que aquele nanico a desejasse.

Essa dura realidade, longe de anular Ricardo, contribuiu, e muito, para que o agora adolescente buscasse com ardor outra compensação, tudo no afã de minimizar suas frustrações.

Ora, o gosto pelo comando levou-o naturalmente a buscar seus afins, o que o fez bater às portas de uma escola militar.

E ele já se via em meio ao brio, à pompa, à disciplina!... Conseguiria, assim, o respeito que precisava, a glória que ansiava, a autoestima que o impediram de ter.

Só havia um único obstáculo que o distanciava de seu objetivo, e se enganaram os que pensaram que o impedimento fosse familiar, monetário ou de estatura. É que Ricardo sempre foi um aluno mediano, e para ingressar nesse tipo de instituição é preciso ser muito bom em todas as matérias enumeradas no edital. Além do que, o nível de cada prova é altíssimo; a exigência, tremenda; o número de candidatos, desanimador; e a concorrência, incompassível! 

É fato que Ricardo gostava da área de Humanas. A bem da verdade, em Português e Redação não tinha para ninguém. No entanto, Matemática, Física e Química definitivamente não eram a sua praia; tanto que passava de ano sempre raspando.

Mesmo assim, não vacilou um só segundo, e inscreveu-se com toda a convicção. Até o concurso chegar, estudaria o quanto e como pudesse.

Seriam dois dias consecutivos de provas – sábado e domingo –, sendo que cada uma teria a duração de quatro horas. Meros “detalhes”, como dizia, impossíveis de intimidá-lo. 

No dia marcado, Ricardo nunca viu tanta gente junta em um só recinto. E olha que o salão onde os aspirantes a cadetes fariam seus exames era descomunal!

  Não se precisaria dizer que, como estivesse apavorado, teve que ir três vezes ao banheiro antes do início da prova. E isso sem contar que tamborilava mais que pica-pau com epilepsia.

O final de semana passou feito rolo compressor. E se Ricardo saía alquebrado, saía também confiante. E como essa confiança é normal àqueles que lutam por aquilo que almejam, o fato de nas provas exatas ter predominado o grego, isso pouco ou nada o atormentava.

Até a publicação do resultado, Ricardo seguia esperançoso. É verdade que a boca do seu estômago doía com frequência... Mas, convenhamos, não há concorrente que não passe por esse tipo de angústia.

Enfim, o resultado foi publicado. E não há coisa mais dolorosa do que não encontrar o próprio nome na lista de classificados.

“Nunca desanime!”, diziam seus pais, sem cessar, ao mesmo tempo em que Ricardo remoía-se em silêncio e disfarçava o apertar da barriga.

O tempo passou, a esperança reavivou-se, os estudos reiniciaram-se, e a vida retomou seu curso. Seria preciso mais esforço para que não se estrepasse na próxima tentativa. E foi o que Ricardo fez.

O ano passou sem pressa, tempo suficiente para que o perseverante jovem se preparasse segundo os seus desejos; pelo menos era o que achava.

Na manhã do primeiro dia de provas, lá estava Ricardo, tendo praticamente inaugurado a fila de entrada.

E se a porta era a mesma, Ricardo trazia, no entanto, uma dose a mais de pânico, um considerável aumento na incontinência, e um visível agravamento no tamborilo. 

O resultado, ora! o resultado... Outro não foi senão o de voltar à estaca zero. 

O mundo só não desabou porque seus pais, que compartilhavam do mesmo ideal, tudo fizeram para que o filho alcançasse o seu objetivo. Assim, se por “motivos imponderáveis” – esses foram os termos que usaram –, Ricardo não conseguira cursar o colégio militar, a academia militar seria a opção natural; isso sem contar o alistamento militar obrigatório, situação ainda distante, mas que ele não desejava, pois não o levaria ao oficialato que desejava.

Ricardo mudou-se para o Rio de Janeiro, onde grassavam os cursinhos especializados na preparação às carreiras militares. Desta vez, dizia para si, nada nem ninguém o impediria de conquistar aquilo que por direito era seu – a honra, a glória, a realização!

Como seu primo já se mudara para essa cidade há pouco mais de três anos, a república onde morava foi a destino natural. E Ricardo passou a dividir um apartamento com mais quatro estudantes universitários, todos médicos promissores.

O histórico introvertido de Ricardo, que nunca o dispusera para os agitos, e a diferença de idade entre ele os colegas de república, que, por mais boa vontade que tivessem, os distanciava no quesito programas, naturalmente impunham ao jovem mais tempo para os estudos do que para a fruição de liberdades.

Tudo isso pareceu ser providencial, pois o cursinho que escolhera era muito exigente e a prova de admissão à academia militar seria daqui a no máximo um ano. 

E se é certo que o novo status que atingia, o de locatário de uma república, desenvolveu o seu senso de responsabilidade, pois tinha, entre outras obrigações, que gerenciar pagamentos, fazer o supermercado, ir aqui e ali por conta própria, etc., não menos exata foi a certeza da vitória que tomou conta de sua alma. Seria impossível, afirmava aos quatro cantos, que depois de um ano inteiro de total dedicação, os céus conspirassem contra o seu propósito e algo viesse a dar errado. Afinal de contas, não fora para isso que nascera?

Quando, enfim, a manhã decisiva chegou, aqueles mesmos companheiros dos concursos anteriores vieram fazer sala a Ricardo; só que, desta vez, ao pica-pau epilético somou-se uma crise de soluços.

Enganaram-se os que pensaram que Ricardo venceu as indesejáveis companhias e tirou de letra o concurso. Na realidade, as provas, sempre as de Exatas, é que arrebentaram o pobre candidato.

Ricardo ficou arrasado. Tudo por que lutara, todo o esforço que dispendera, tudo foi parar no lixo! Como – questionava-se sem parar – o aluno mais interessado, mais disciplinado, e o mais idealista de todos não conseguiu passar naquelas provas? Como as Forças Armadas não o percebiam e não permitiam que pertencesse às suas fileiras?! 

Ora, como fora reprovado pela terceira vez, o excluído começou a crer que fosse curto de inteligência; pelo menos com relação àquelas detestáveis disciplinas. E quanto mais os dias passavam, mais essa crença crescia em seu espírito.

E tão corporificada se tornou, que Ricardo, porque desolado, chegou a escrever uma carta de desabafo aos pais, dizendo-se o mais burro dos estudantes.

Seu Armando e D. Leonor, muito compadecidos, mais uma vez acolheram o filho. E no ano que se iniciaria, prometiam, Ricardo buscaria novos ares. Moraria em uma república com gente da mesma idade, e estudaria em outro cursinho, até melhor que o anterior. 

E de fato, foi isso o que aconteceu; apenas que os novos colegas de república seriam concorrentes de Ricardo, e estudariam todos no mesmo cursinho. 

Assim, a vida proporcionava mais uma chance a Ricardo – seria o quarto concurso que prestaria! –, que, desta vez, tinha certeza absoluta de que gabaritaria as provas, cursaria com brilhantismo a academia militar, e despontaria para a vida com a devida e gloriosa patente.

Ricardo recomeçou o ano letivo com a mesma garra com que os mineiros oitocentistas correram o oeste americano à procura de ouro. As aulas, se bem que repetições do que aprendera, eram devoradas com ardor; o tempo, gasto com disciplina e proveito; e o idealismo, ufanado além do necessário.

Seus colegas de república logo perceberam esse último atributo, e viram em Ricardo um modelo a ser seguido. 

Por isso mesmo, não conseguiam compreender a falta de interesse que dele se apoderou depois do quarto mês de estudos. 

A esse desinteresse, que crescia dia a dia, veio somar-se um fato que, se pueril para uns, foi determinante para a reviravolta que ocorreria em sua vida.

Certa vez, porque se sentisse agoniado, Ricardo resolveu aceitar o convite de um de seus colegas de república para que fossem pegar uma praia.

Quando lá chegaram, uns foram direto para o mar; outros se enturmaram a um grupo que jogava voleibol na areia; e Ricardo e o companheiro de quarto ficaram apenas papeando e assistindo a essa partida. 

Depois que o jogo acabou, todos se reuniram em um quiosque para tomar água de coco e jogar conversa fora. 

Sabe-se lá por que, mas o assunto salário veio à tona. E foi aí que Ricardo soube que aquele fusquinha bege, estacionado do outro lado do calçadão, era o único carro que conseguira comprar um dos que ali estavam. Isso, por si só, seria de pouca ou nenhuma importância, não fosse o fato desse senhor ser major da ativa do Exército brasileiro.

Ricardo passou a refletir, e com tristeza... Se havia posto, brio, honra, gala, longe estavam de serem seguidos por um salário condizente. Ou, pelo menos, por aquele que imaginara um garboso rei, enclausurado em seu castelo de cartas.

O monarca, então, ficou bastante chateado. Daí ao desânimo, menos de uma tarde se passou. E como não visse futuro que o satisfizesse, aquela triste realidade vinha pôr uma pá de cal sobre o seu sonho de criança. E ele jogou a toalha.

Era preciso coragem para pedir para voltar. Nesse sentido, como explicar, e convencer, que as labaredas que sempre demonstrou, e cultivou, foram diminuindo, minguando, e acabaram sendo reduzidas a meros fogos-fátuos?  

Mesmo assim, arriscou. Pegou o telefone, expôs o que sentia, ouviu de seus pais mais de uma súplica, e retornou para casa de cabeça baixa, orelhas caídas e rabo entre as pernas.

Não soube o que se dera aos seus colegas de república, pois partiu sem olhar para trás. Mas como os conhecia, supôs que passariam em qualquer concurso.

Durante o período de “convalescença”, Ricardo questionou-se até não mais poder. Por que o que buscara acabou desmoronando? O que não conseguira enxergar nesses anos todos de ideal? Se tivesse estudado um pouco mais teria conseguido passar no concurso? Essas e muitas outras perguntas foram levantadas, meditadas e respondidas na medida do possível, mas sem jamais o convencerem por completo.

O tempo não para, contudo. Portanto, era preciso tomar um novo rumo. 

Pois não é que o tranco que Ricardo levou foi o catalisador que faltava para que o seu ideal por fim se autocorrigisse? Realmente, ao que concluía, a disciplina, a hierarquia e a obediência foram maneiras equivocadas, meios errôneos de fazer valer aquele sentimento inato, aquela essência que queria eclodir, mas que era impedida pela rigidez que sempre o caracterizou.

Seguiria, assim, a carreira jurídica, profissão que seu pai exercia. 

Dessa forma, trocaria a farda pela beca ou toga; as armas, pelos códigos; e as ordens, pela argumentação. 

Em que pese muito do aprendizado ainda estar fresco, outras matérias – a Biologia, por exemplo – teriam que ser reestudadas. Dessa forma, foi necessário matricular-se em mais um cursinho. 

Haja paciência para ver e rever o que já tinha sido estudado e reestudado!... E como, naquela época, não havia o atual processo seletivo, em que todos são aprovados, o jeito era mesmo submeter-se à impactante peneirada do vestibular. 

Aqui vale a pena mencionarmos que Ricardo não só deu graças a Deus por ter sido excluído do serviço militar por excesso de contingente, como também achou tempo para se interessar por outras garotas durante o cursinho. Pudera! completaria dezenove anos de idade, e por mais retraído que fosse, sua carência de afeto feminino queria ser suprida a qualquer custo.

Oh! dilema... Concentrar-se nos estudos ou entregar-se às conquistas amorosas? 

Sua baixa estatura e tremenda timidez, no entanto, ajudaram na escolha à resposta.

Assim, estudou com afinco, incluindo o dia anterior ao início do vestibular. 

Ricardo prestou três faculdades. Queria, por óbvio, entrar na pública, porque gratuita.

Menos mal que seus pais podiam pagar...

Optou, assim, pela que tinha mais tradição, e iniciou os estudos cheio de entusiasmo.

O que faria ao final da faculdade? Por meio de qual das carreiras jurídicas extravasaria a sua ânsia pelo mando, por justiça? Qual área do direito o faria sentir-se, enfim, realizado? Ele sempre se perguntava...

E era bom que o fizesse, pois o leque era vasto. De uma coisa, porém, já tinha certeza: A beca seria subsidiária, pois a toga era o seu principal objetivo.

É interessante apontar a preferência que Ricardo tinha pela área penal. A possibilidade de condenar o réu a dez, a vinte, a mais de trinta anos de reclusão fazia o estudante vibrar! E como estagiasse em uma Vara Criminal, unia a fome à vontade de comer, fazendo com que só aumentasse o seu gosto pelo poder de decidir sobre a liberdade das pessoas.

E já se via decretando prisões preventivas, denegando liminares em habeas corpus, e sentenciando muito além do pretendido pelo Ministério Público. 

A sós, em seu quarto, Ricardo chegou a questionar-se, e mais de uma vez, como tivera a certeza de que nascera para os quartéis, quando, de fato, tudo com que sonhara conseguiria, agora, por meio do direito? O prestígio, o respeito, o salário... era tudo uma questão de poucos anos. 

Ocorre que sua rigidez não diminuiria, assim, de um momento para outro. Dessa forma, nem fez como muitos de seus colegas de classe que, flexíveis, foram à procura de vários estágios, incluindo na área cível, nem admitiu prestar outra carreira que não a de juiz de direito.

A única exceção que aceitou, e isso graças à pressão que seu pai e colegas passaram a exercer, foi a de prestar o exame para se tornar advogado.

Aqui vale a pena citarmos duas curiosidades: A primeira, que se cinco são os anos para se concluir uma faculdade de direito, seria concebível que nesse longo período Ricardo não conseguisse uma única namorada, por mais carente de dotes ou tímido que fosse?

Pois perderam o cacife os que apostaram no seu triunfo. Seria o quinquênio mais imaculado de que já ouviram falar...

E a segunda, que durante esses anos de faculdade, Ricardo foi trabalhando bastante consigo mesmo, de modo que o pânico, a incontinência e o tamborilo foram reduzidos a níveis aceitáveis, sobretudo depois que concluiu um renomado curso de oratória.

Mas, como dito, ele nunca foi um aluno extraordinário, característica essa de que não se livraria por toda a faculdade. Portanto, se gostava e ia muito bem em direito e processo penais, não se dedicava nem tirava boas notas nos outros ramos do direito.

Dessa forma, além de não ter conseguido passar no primeiro exame que prestou para a Ordem dos Advogados do Brasil, só conseguiu passar na primeira fase do concurso que prestou para juiz de direito.

Não iremos, aqui, descrever a desilusão que tomou conta de Ricardo; seriam necessários muitos e lamuriosos parágrafos. Até porque, e como já se pôde perceber, esses não seriam os únicos concursos que o recém-formado prestaria.

Assim – e não que isso seja incomum –, só na terceira tentativa é que Ricardo conseguiria ser aprovado como advogado.

Quanto à carreira que realmente desejava, a de magistrado, chegou a prestar três outros concursos; um, até, em outra unidade da federação. Mas em todos não conseguiu passar da segunda fase.

Ora, não seria leviandade afirmar que a “síndrome da segunda fase” já se enraizara no íntimo de Ricardo... 

O fato de que advogava, pouco ou nada o compensava, e muito menos o satisfazia, pois Ricardo mantinha-se resoluto, inquebrantável em seu desejo: Seria juiz de direito a qualquer preço, ou jogaria tudo para o alto!  

Nesse meio tempo, seu ex-chefe de escritório, que muito o admirava, decerto compadecido dos seus reiterados insucessos, sugeriu que passasse a dar aulas na faculdade em que lecionava; faria o que estivesse ao seu alcance para que fosse admitido. 

Aqui, um ponto curioso nessa nova fase da vida: Graças ao curso de oratória que fizera, e que fora fundamental, Ricardo já dominava o medo de falar em público. Ora, como preenchesse os requisitos legais, aceitou a ajuda e passou a dar aulas; se bem que longe dos ramos de que gostasse. Começaria, assim, ensinando introdução ao estudo do direito, às sextas-feiras, à noite, e no último período. Confessemos, ninguém merece!...

No entanto, antes de pisar pela primeira vez na sala de aula, aquele mesmo nó que o incomodara na boca do estômago, nos momentos cruciais de sua vida, resolveu tentá-lo uma última vez.

Como resposta, Ricardo opôs todas as técnicas que aprendera. Uma, no entanto, descobriu de inopino: Ele quase acabou com uma garrafa inteira de chá de cidreira, que ficava à disposição na sala dos professores. Dessa forma, conseguiu sobreviver ao matadouro.

Ante esse novo status, o desânimo que tomara conta de Ricardo aos poucos foi dando lugar a um quê de conformismo. E ele passou a perguntar-se se essa nova luz que o atingia, a da docência, não teria sido obra da Providência, o que, mais cedo ou mais tarde, acabaria por satisfazer aos seus velhos anseios.

A essa possibilidade veio somar-se o fato de que Ricardo, passados dois anos, enfim conseguia as cátedras de que mais gostava, o que só fez incrementar o seu interesse por essa nobre missão, e melhor sinalizou o caminho a que fora conduzido.

Ricardo passou, assim, a experimentar uma estranha sensação. Até aqui, tudo por que lutara não dera certo. É verdade que se sentia querido e prestigiado quando ensinava. A verve fluía, a didática aprimorava-se ano a ano, e a satisfação e o aprendizado dos alunos aumentavam a olhos vistos; tanto que chegou a ser escolhido paraninfo de uma turma, e professor homenageado de outra.

Mas, mesmo assim, essas conquistas não o completavam, e uma lacuna sutil teimava em incomodar o seu espírito. 

No que se refere à busca pelo poder, é preciso dizer que aquela sensação de estranheza tornava-se mais sensível nos dias em que teria que aplicar as provas. Nesse período, confessava-se respeitado, temido, o todo-poderoso. E ai do desavisado que fosse pego colando!... Ah! daí ele ia ao delírio!

Fosse como fosse, Ricardo encontrava-se; senão de imediato, a pouco e pouco.

Mas quando o jovem professor completava cinco anos de docência, um fato veio abalar a sua tranquilidade. 

Equivocaram-se os que supuseram morte na família – ele ainda morava com os pais –, a compra do bilhete milionário, ou o encontro com sua alma gêmea.

Foi algo muito mais simples, mas não menos importante; pelo menos para a psique de Ricardo.

Como se preocupasse cada vez mais com a estabilidade, Ricardo topou com uma notícia que o fez bambear: Corria, à boca miúda, que já decorrera tempo demais desde o último concurso público para preenchimento de cargos à magistratura militar federal. 

Em um primeiro momento, Ricardo ficou estático. Depois, como se voltassem a um só tempo todas as suas faculdades, explodia em euforia! Ato contínuo, deixava-se arrastar pelo deslumbramento!...

Sem dúvida – afirmava para si –, aquilo que certamente o satisfaria, e que, sabe-se lá por que, não conseguira perceber até então, finalmente se fazia conhecer! A vida, enfim, preencheria aquele hiato em seu espírito, pois faria com que se unissem o útil e o agradável: Seria juiz-auditor federal, e julgaria, além dos civis, os membros das Forças Armadas!

Esse vaivém em suas intenções, diriam uns, por certo punha a baixo algumas questões que acreditávamos para sempre sepultadas. Era o que o professor também pensava.

À noite, Ricardo não conseguiria jantar serenamente. Tomado de um ânimo incomum, tentaria conciliar garfadas e goladas ao transmitir a novidade para seus pais. 

Seu Armando e D. Leonor ficaram boquiabertos. Afinal, não só se lembravam dos vários insucessos que colecionara, como também de que o filho abandonara a busca pela carreira das armas.

Ficaram, porém, um pouco mais aliviados depois que Ricardo explicou que o concurso que pretendia não o tornaria militar. Continuaria a ser o que sempre foi, um civil. Apenas que, como juiz-auditor federal, julgaria militares e civis que cometessem os chamados crimes militares.

Esclarecida essa situação, e, na medida do possível, comemorada com seus pais, Ricardo só foi dormir depois que tomou um bom banho quente. Era isso ou continuaria com uma desconfortável taquicardia.

Estirado na cama, de olhos abertos e respirando pausadamente, Ricardo começou a rever sua vida. A infância e a adolescência foram os anos mais terríveis, os mais traumáticos. A frustrações, o bullying, o desejar ser, ter, e que culminaram nos muitos fracassos, tudo, enfim, não passara de uma noite escura, impenetrável e gélida.

Com o passar dos anos, chegando à maturidade, o lusco-fusco da docência já fendia o breu da sua existência, e passava a aquecê-la.

Agora, ao que parecia, as espessas nuvens poderiam, enfim, ser para sempre dissipadas, o que abriria caminho para que os raios de sol do poder, da autoridade, do vultoso salário, e de outras várias realizações iluminassem e acalorassem o seu presente e o seu futuro.

Só havia um porém: A agourenta “síndrome da segunda fase”...

Ora, pensava Ricardo, tudo por que passara até o momento nada mais eram que simples provas que o destino impusera; um doloroso teste para que seu mérito fosse ainda maior. 

Perseverança, otimismo, pensamento positivo, foco, dedicação, disciplina... Agindo dessa maneira, concluía sorridente, e as portas da vitória finalmente se abririam!

No dia seguinte, Ricardo elaborou um plano de estudo digno dos mais impecáveis perfeccionistas. E conciliando-o com o trabalho profissional, amarrava-o de tal maneira que nem um simples segundo seria desprezado. Assim, fossem nos dias úteis, nos sábados, nos domingos, nos feriados, ou no período de férias, jamais ficaria ocioso.

Seus pais até ficaram comovidos com a inarredável dedicação assumida pelo filho, e tudo fizeram para que nada o desviasse do caminho que tornava a percorrer.

Merece atenção o fato de que quanto mais Ricardo estudava as matérias exigidas por aquele concurso – e eram muitas! –, mais deslanchava a docência, e mais todos ganhavam, ele e seus alunos. Era como se uma atividade estimulasse a outra, e ambas seguissem adiante.

Portanto, não havia mais espaço em sua vida para desânimo, cansaço ou qualquer outro obstáculo. O que existiam eram a vitória e a tão perseguida realização!

De outra parte, Ricardo achou imprescindível aproximar-se dos que atuavam na área jurídico-militar. Ora, como haveria uma prova prática, provavelmente a elaboração de uma sentença, os macetes que só a experiência ensina também teriam que ser explorados e dominados.

Por isso, tratou de conseguir “estagiar” junto às Auditorias, o que lhe rendeu não só apreço junto aos profissionais que nela atuavam, como também um invejável e sólido conhecimento.

Um ano inteiro chegava ao fim, e nada do concurso abrir.

Não que essa incerteza começasse a desanimá-lo... Mas como soubesse de cor tudo o que poderia ser pedido, e como se aprimorasse dia a dia nos meandros jurídico-militares, para Ricardo não havia mais por que protelarem a publicação do edital.

E em meio a esse chove não molha, em meado de dezembro uma velha amiga de D. Leonor veio convidar a todos para passarem um final de semana na praia. Na verdade, essa senhora atendia a um secreto pedido da mãe de Ricardo, que já via o filho sucumbir ante a estafa que o final do ano a todos impõe.

De fato, como estivesse esgotado, Ricardo nem pensou em recusar, e aceitou o convite de muito bom grado.

Essa amiga só “se esqueceu” de comentar que também convidara outra família, cuja filha também estava solteira...

Que não se duvide do embaraço que tomou conta de Ricardo assim que apresentaram Helena. E que não se enganem quanto ao interesse que tomou conta da bela arquiteta assim que pousou os olhos no encabulado advogado, mesmo sendo ela um pouco mais alta.

É claro que nem o aprendizado da oratória, nem a sua prática nas salas de aula ou na vida forense foram suficientes para enterrar de vez anos de frustrações amorosas. Por isso, aos bate-papos insistentes de Helena, entremeados com olhares provocantes, Ricardo só fazia gaguejar e tremer, o que a deixava ainda mais interessada, e, aos demais, com uma vontade louca de rir.

Foram os dois dias mais paradoxais por que Ricardo já passou. Descera a serra para curtir o mar, relaxar estirado na espreguiçadeira, desanuviar-se de tudo o que lembrasse o estudo, a disciplina, o concurso público. No entanto, retornava à capital mais tenso do que antes, pois a graça de Helena, somada aos seus fascinantes dotes de mulher, não deixaram em paz o jovem professor, sobretudo porque trocaram os números dos telefones.

Restava saber se aquele projeto de amor criaria raízes ou restaria como os outros, acariciados pelos braços de Platão.

Ora, quando o coração de uma mulher bate além do habitual, não há quem a impeça de conseguir o que quer. Por isso, e como soubesse com quem lidava, foi Helena quem primeiro ligou.

Quando atendeu, Ricardo tomou um susto. Custava crer que aquela linda mulher cumpria o que insinuara – uma simples ligação.

Mas era Helena, sem dúvida. E o jeito foi começar a conversar.

De início, as respostas que Ricardo dava estavam mais para monossilábicas. Com o passar dos minutos, porém, e porque se sentisse protegido por não poderem se encarar, Ricardo soltava-se, e as frases já eram ditas sem muitos gaguejos. 

A conversa prosseguia, e os pais de Ricardo – que olhavam para a TV, mas, na verdade, escutavam o que dizia – já percebiam e se deliciavam com um e outro risos que o filho deixava escapar com a maior espontaneidade.

Quando Ricardo desligou, um sorriso apatetado parecia não querer deixá-lo. E um suspiro há muitos anos represado irrompeu incontrolável. Ele encontrava, e depois de algumas décadas de amores inatingíveis, uma mulher que, além de linda e escultural, parecia, sim, querer ser sua namorada!

Aquele apatetamento só foi quebrado com a indiscreta intervenção de seu Armando, que, não se aguentando, quis saber ao filho se desta vez ele desencalharia.

Risadas, reprimendas e acanhamentos à parte, Ricardo respondia confiante, com a certeza íntima de que a solidão enfim acabaria.

E ele não se enganaria desta vez; se bem que o primeiro encontro fosse um tanto tenso para o recém-enamorado... Aliás, tirando o fato de que esbarrara sem querer na taça de vinho, fazendo-a tombar sobre a mesa e sobre o colo de Helena; de que, por força desse incidente, quase teve um ataque cardíaco; de que, depois que se refez, teve que enfrentar uma crise incontrolável de soluços; e de que foi a destemida arquiteta quem teve que tomar a iniciativa, lascando-lhe um delicioso beijo de despedida antes que saísse do carro; tirando tudo isso, o primeiro encontro não poderia ter sido mais perfeito.

Não teríamos medo de errar se disséssemos que Ricardo nunca passara um Natal e um Réveillon tão felizes! Só não foram jubilosos porque Helena teve que comemorar essas datas junto a seus parentes.

Janeiro começou sem pressa. E se o namoro prosseguia cheio de entusiasmo, o mesmo não se poderia dizer quanto ao esperado concurso.

Graças a essa torrente amorosa que só fazia aumentar, bem como por força da incerteza quanto à abertura do concurso, Ricardo começou a relaxar a disciplina que mantinha nos estudos.

Menos mal que tivesse contado a Helena sobre a carreira que pretendia e sobre o esforço dispendido até então. Não fosse isso, e ela não teria imposto uma “regulamentação” ao namoro. 

Assim, tendo como aliados sua namorada e pais, Ricardo retomou os estudos com muito mais perseverança. Até porque, já idealizava Helena sua esposa, e passar no concurso para juiz-auditor federal era mais que necessário, era imprescindível!

Essa quase calmaria perdurou até início de fevereiro, quando o edital foi publicado. Daí por diante, o namoro ficaria restrito a poucas horas nas tardes de domingo, e todo o tempo que sobrasse seria dividido entre as responsabilidades profissionais e os estudos, mais a estes do que àquelas.

No primeiro dia de exame, a prova teste, e por incrível que possa parecer, Ricardo soube controlar-se como nunca. Isso se deveu não só ao domínio das matérias que estudara, como também à ajuda que recebera de Helena, que o cobrira com a calmaria dos carinhos e lhe ensinara muitas das técnicas de respiração aprendidas na prática de anos de hataioga. 

Assim, antes da prova começar, o medo estava sob controle; o banheiro foi visitado apenas uma vez; e o pica-pau nem pôde se fazer ouvir, pois Ricardo enfiara mentalmente uma rolha em seu bico.

Quando publicaram o resultado da primeira fase, Ricardo passava entre os dez primeiros! E olha que se inscreveram mais de três mil candidatos! 

A alegria foi tamanha que não havia espaço, tempo ou maneiras suficientes para que ele e os que o amavam pudessem comemorar a contento. E se abraçavam, e se beijavam, e choravam, e faziam mais de um plano e muitas, mas muitas promessas. A propósito, Helena teve que segurar o ímpeto de seu namorado que, exultante, a pediu em casamento.

Do resultado à segunda fase, menos de um mês haveria. Portanto, depois de alguns dias comemorando, Ricardo retomava a rotina. Mas, agora, muito mais estimulado.

Como supunha, a elaboração de uma sentença foi o que pediram na segunda fase. Daí que Ricardo passou a escrevê-la com a tranquilidade dos que entendem do assunto.

Quando redigia a fundamentação, no entanto, um detalhe veio desacelerar a fluidez do seu raciocínio.

Ricardo viu-se em uma bifurcação: Se tomasse a estrada da direita, isto é, se entendesse que a palavra contida no enunciado tinha um determinado significado, a sentença teria um fim. Mas se optasse pelo caminho da esquerda, ou seja, se outro fosse o seu significado, a sentença caminharia, por óbvio, para um resultado completamente diferente.

Triste é verificar que a sua vida estava à mercê de uma simples palavra... No entanto, o tempo não se compadece das escolhas, por mais importantes que sejam. Assim, era forçoso tomar uma decisão.

Ricardo, então, abstraindo-se de tudo e de todos, colocou a caneta sobre a mesa, fechou os olhos, e se entregou a um exercício de respiração. 

Essa busca à serenidade não levou mais que sete minutos. 

E o caminho da esquerda foi o escolhido.

Momentos antes de reencontrar Helena, que prometera ir encontrá-lo ao término da prova, Ricardo saía atordoado, como se fora um balaio em que se debatiam a certeza íntima com a desconfiança, a alegria com a frustração, e a esperança com a desesperação.

Helena, que notava o seu semblante, tratou de aconchegá-lo em seu coração, e antes mesmo que ensaiasse relatar as primeiras impressões, ela o lembrava de que praticamente gabaritara a primeira prova. Portanto, que não criasse caraminholas, pois tudo haveria de dar certo.

Esse argumento de fato reconfortava. Quem passara para a segunda fase entre os dez primeiros não teria muito com que se preocupar. Afinal, não se inscrevera como paraquedista.

No entanto, e este pensamento teimava e perturbá-lo, também passara para a prova escrita nos concursos anteriores, mas não conseguira ir além. Aquela malfadada “síndrome”, qual espectro tenebroso, tudo fazia para desconcertá-lo. 

Podemos afirmar que as semanas que se seguiram foram tensas. Por mais que Helena ou seus pais o tranquilizassem, por mais que revisse o caso que fora apresentado, por mais que não mudasse de opinião quanto à decisão que tomara na fundamentação daquela sentença – ele não tinha coragem de ir confirmar o caminho que optara com seus colegas de Auditoria –, Ricardo não conseguia ficar em paz.

É claro que ele ficaria em muito pior estado se até a proclamação do resultado um de seus pais viesse a falecer, ou se sua namorada o trocasse por outro homem, mais alto e bonito.

Mas como nenhuma dessas hipóteses aconteceu, ele não chegou a se desesperar.

Surtaria, contudo, porque seu nome não estava entre os que passaram para a terceira fase do concurso.

Em seguida, seria vítima de uma profunda depressão, pois compreendia que, se tinha capacidade para advogar e dar aulas, não tinha inteligência suficiente para passar da segunda fase de qualquer concurso que dissesse respeito à magistratura. E essa conclusão o arrasou.

Por força disso, Ricardo deixou-se abater pelo extremo dos cansaços, esmorecendo a olhos vistos.

Em vão seus pais e sua namorada tentaram reanimá-lo. Não havia palavras que o fizessem levantar os olhos, pois, como alcançara a idade limite, a lei fechara a última porta à magistratura militar federal, o derradeiro caminho à sua realização.  

Terrível é depender a vida de um fato que pode ou não acontecer, ainda mais quando se deu tudo de si para consegui-lo! E só os que passaram por isso sabem o tamanho da dor, do abatimento que se apoderou de Ricardo...

Alguns dias de completa solidão foram necessários para que Ricardo começasse a levantar a cabeça. No entanto, seus pais achavam que ele, sozinho, não teria forças bastantes para soerguer-se. E tanto isso era verdade que sequer tentou recusar ajuda de um psicólogo. 

Por certo que muito choro foi vertido nas sessões com o terapeuta, até que Ricardo começasse a divisar um rumo à sua vida. Deveria, assim, conformar-se com os limites que o destino impunha, continuando, pois, a advogar e a lecionar.

E se no futuro se encantasse de outro concurso público, que arregaçasse as mangas e se entregasse aos estudos; que não esmorecesse! Helena e seus pais estariam sempre ao seu lado, amando, amparando, estimulando. 

Depois de cerca de seis meses de tratamento, Ricardo sentia-se suficientemente forte, o que lhe valeu a alta, votos de felicidade e mais um amigo.

Mas como não mais tivesse vontade de advogar, o jeito foi entregar-se à docência.

Assim, Ricardo passou a dedicar-se ao ensino, torcendo, em silêncio, para que essa área o conquistasse para sempre.

Ocorre que o entusiasmo de que desfrutava, antes do derradeiro insucesso, deixava de existir. Ricardo percebia que o prazer que sentia em dar aulas era financiado por uma boa dose de ilusão, abastecida pela certeza inabalável de que passaria no concurso e seria juiz-auditor federal. 

Mas como manter e aprimorar o bom convívio com os alunos se o combustível da sua fantasia queimara-se por completo? A cada vez que perguntassem o que fazia, teria que se dizer advogado. Mas como se vangloriar desse sacerdócio se as estacas em que se apoiava foram todas carcomidas pelos cupins do desengano? 

A continuar neste caminho – carente do elixir do estímulo e privado da bússola da realização –, Ricardo já se via órfão da alegria, frustração essa que não seria suprida sequer com o amor de Helena.

Dessa forma, um sofrimento atroz tomava conta do seu espírito, alastrando-se como um câncer que corrói, encorpando-se silenciosa e impiedosamente aula após aula.

E como essa amargura só fazia crescer, Ricardo quis gritar, correr, fugir!... E acabou desfalecendo.

Foi acordar em uma cama de hospital, circundado por seus pais e Helena, que não sabiam o que dizer, o que mais fazer.

Ricardo, que não compreendia o que acontecia, aos poucos se foi acalmando. E uma vez inteirado de onde estava, quis logo se levantar.

Não o deixaram, por óbvio. 

Depois de uma e outra contestações – na verdade, um quase esperneio –, ele acabou aceitando o que recomendavam.

De súbito, passou a lembrar-se de um sonho que tivera. E tão marcante tinha sido esse sonho que, em pouquíssimo tempo, todo ele se refez em sua mente, como se tivesse acabado de assistir a um filme que muito o impressionara. 

Quis, então, contá-lo com o mesmo ímpeto de um náufrago que se vê a poucos metros de uma tábua. Mas Helena e seus pais não o deixavam, pois queriam que poupasse suas forças.

Como insistisse, e como já demonstrasse certa fúria, um médico que acabava de entrar aconselhou que o deixassem falar, que o deixassem extravasar.

E ele começou o relato: Disse que Helena também estava no sonho; que tinham ido para um hotel fazenda; que ele a convidara para passear na mata, mas ela preferiu tomar banho de sol. 

Mencionou os tropicões, os arranhões e as picadas que levou durante o passeio na trilha que escolhera.

E quando começou a descrever um robusto peixe que parecia estar imóvel sob o leito do rio, frisou as sobrancelhas, enrugou a testa, e diminuiu a voz até se calar.

Helena, seus pais e o médico ficaram apreensivos, mas ninguém ousou interferir; até porque, Ricardo seguiria adiante...

Depois de dizer que, por força da forte correnteza, o peixe apenas dava a impressão de estar parado, pois, na realidade, lutava com todas as suas forças para seguir rio acima, Ricardo tornou a mudar o semblante, fato percebido por todos os ouvintes.

A cena em que Ricardo apostava que o peixe venceria a correnteza e seguiria rumo à cabeceira em no máximo cinco minutos, foi descrita pausadamente; e mais com o sentimento do que com os lábios. Aliás, seus olhos já não fixavam os que o rodeavam, vagueavam... 

Depois que terminou de dizer que o peixe desistiu de lutar pelo caminho que escolhera porque ficou completamente esgotado em suas forças, e que, por força disso, deixou-se levar pelo fluxo do rio, Ricardo, percebendo um algo a mais, levou as mãos ao rosto e caiu em pranto.

É claro que ninguém entendeu o porquê dessa reação. E só não continuou chorando tudo o que poderia porque sua mãe, de coração confrangido, pousou a mão sobre o seu ombro e o abraçou em seguida, repleta de ternura. 

Seu pai e Helena a eles se juntaram, inundando-o de carinho e reconforto.

Depois de alguns minutos, que mais pareceram horas, e como se sentisse mais forte, Ricardo quis continuar a falar; não o sonho que acabara, mas, sim, o que dele apreendeu.

Aquele peixe queria a todo custo subir até a cabeceira. Para isso, usou de todas as suas forças para conseguir o seu intento. Mas como a correnteza era muito mais forte, invencível, o máximo que conseguia era aumentar o próprio sofrimento. Por fim, e como o sofrer chegasse ao limite, extenuou-se, e alternativa não teve senão a de se deixar levar pelo curso das águas. 

Dessa forma, Ricardo finalmente compreendia que os insucessos que acumulou buscando as carreiras das armas ou da magistratura nunca tiveram a ver com falta de inteligência, mas, sim, com o teimar em nadar contra a correnteza que o destino lhe traçara.

Ora, que fizesse como aquele peixe, que se deixasse carrear, que se entregasse ao fluxo da sua vida, aquele que sempre o quis conduzir a um lugar tranquilo, onde só felicidades colheria. 

Alguns meses foram necessários, ainda, para que Ricardo começasse a perceber para onde deveria deixar-se levar. E quanto mais entrevia o nascer do dia, mais esperançoso ficava em relação ao seu destino.

Esta nova etapa da vida, embalada pelo marulho, enlevada pelos cantos dos pássaros, e inebriada pelo farfalhar dos arbustos, outra não poderia ser senão a que os bancos escolares sempre tentaram mostrar a Ricardo.

E tão certa foi a sua escolha, que hoje, por coincidência o mesmo dia em que Helena aceitou o seu pedido de casamento, Ricardo recebia a notícia de que o seu romance de estreia tornara-se um best-seller.




Dias Campos - Destaque Literário 2020, concedido pela Mágico de Oz; Embaixador da Literatura, título concedido pela Corte Brasileira de Letras, Artes e Ciências - COBLAC, 2020; Ambassadeur Honneur et Reconnaissance aux Femmes et Hommes de Valeur, título concedido pelas Luminescence Académie Française des Arts, Lettres et Culture – Literarte, 2020; Destaque Cultural 2019; Destaque Social 2019; Embaixador da Paz; e Comendador da Justiça de Paz, com a Comenda Internacional Diplomata Ruy Barbosa “O Água de Haia”, os quatro títulos conferidos pela Organização Mundial dos Defensores dos Direitos Humanos – OMDDH, 2020; Prêmio Internet Coblac – Corte Brasileira de Letras, Artes e Ciências, 2020; Destaque Literário no 32º (2020) e no 28º (2018) Concurso Literário de Poesias, Contos e Crônicas, promovido pela Academia Internacional de Artes, Ciências e Letras a Palavra do Século 21 – ALPAS – 21; ganhador do Troféu Destaque na 7ª Edição do Sarau Musical Cultural, 2019; Menção Honrosa no Prêmio Nacional de Literatura dos Clubes – 2019; Selo Destaque do mês de agosto, conferido pelo site Vozes da Imaginação, 2017; autor do romance A promessa e a fantasia (Promise and fantasy), ambas as versões em Amazon.com.br, 2015; “Embajador de la Palabra”, título concedido pela Asociación de Amigos del Museo de la Palabra, 2014; 2010; autor do romance As vidas do chanceler de ferro, Lisboa: Chiado Editora; Colunista do Jornal ROL; do (atual) site Cultura & Cidadania; do Portal Show Vip; e do (atual) portal Pense! Numa notícia; autor de diversos textos literários; autor e coautor de livros e artigos jurídicos.