Como usar um pesadelo, de Bruno Ribeiro

 

por Adriane Garcia__



 

Em seu precursor "A interpretação dos sonhos" (1900), Freud nos informa que o sonho é a realização disfarçada de desejos. Durante o sono, o que fazemos é desligar nossos sensores (e censores) para os estímulos externos; assim, afastados do mundo, nossa censura enfraquece. Isso permite que o conteúdo inconsciente, reprimido, secreto, ultrapasse a barreira e se manifeste. Porém, alguma censura do consciente ainda age e o conteúdo não permitido se dissimula, se distorce, se condensa, se figura e se realiza em forma de sonho. O material dos sonhos é a memória de restos diurnos, da vida na vigília desde a infância. Como em um caleidoscópio, mas não ao acaso, o sonho é uma narrativa de combinações as mais variadas, cujo autor é o inconsciente e pode ser articulado a ponto de ter vários sentidos na interpretação do sonhador.  

 

Para dar atenção aos sonhos, esse maravilhoso e rico repertório de autoconhecimento, é preciso dar-se o tempo de dormir, sonhar, lembrar, até mesmo narrar ou escrever a experiência onírica. Em um mundo apressado, no qual somos parte de uma engrenagem produtiva que jamais pode parar de trabalhar e, na melhor das hipóteses, consumir, o sonho passa despercebido. O pesadelo – com todas as emoções e medos que evoca – acontece sem que se reflita sobre ele. Deixamos de contar nossos segredos a nós mesmos, de sermos surpreendidos sobre forças que se ocultam no nosso interior. Em um sistema que promove tudo o que é superficial, o aprofundar-se em si é algo a ser evitado.

 

A coletânea de treze contos de Bruno Ribeiro, intitulada "Como usar um pesadelo" coloca o sonho de terror no centro de todas as histórias. Se o sonho diz do próprio sonhador e não de outra pessoa, ao trazer esses elementos oníricos para a literatura, Bruno Ribeiro entrega-nos outros sonhos que não mais os seus, pois agora passam a ser nossos, sendo que cada símbolo ali tocará de maneira pessoal o leitor. Há também os sinais típicos, simbologias universais.  Reconhecemos os pesadelos narrados por Bruno Ribeiro porque seus elementos também nos são comuns, ainda que cada um os leia à sua maneira, pois o exercício de ler é o exercício de uma coautoria.

Nem sempre os pesadelos são lembrados na íntegra. O mais comum é que preenchamos as lacunas ao narrar o sonho, no momento em que nossas censuras conscientes já estão bem acordadas e que a linguagem de vigília elabora o conteúdo manifesto, podendo até chegar, em análise, aos conteúdos latentes. Nos contos de "Como usar um pesadelo", a intrusão dos componentes ilógicos, as associações imprevistas, fragmentadas e compostas de imagens, já estão organizadas em narrativas que os leitores são capazes de compreender. Não se trata de literatura surrealista, no sentido formal, com discurso e associação livres. Trata-se do uso do nonsense típico dos sonhos, onde o caos não se dá na linguagem, mas no mundo que é observado.

 

O repertório onírico de Como usar um pesadelo apresenta-nos personagens e situações inusitados: um homem que observa uma mosca agonizante próxima ao seu prato com bife e batata frita. O bicho agoniza e o homem come. Todo o cenário é de brutalidade e terror. Até mesmo a garçonete tem algo de mosca. Uma caixa misteriosa com algo que deve ser consumido em quinze dias e que ninguém sabe o que há dentro. Uma narradora sexualmente atraída pelo dono da caixa tentando que ele ouça seu pensamento “vem me ver”. Uma tentativa de assassinato que se repete todas as noites, mas o alvo nunca dobra a esquina, nunca morre, pois jamais encontra a sonhadora e, assim, ela preserva o desejo intacto. Um pai olha o filho com espanto, achando-o feio, monstruoso; ao mesmo tempo, aparece um monstro na cidade, suscitando teorias. O monstro seria humano, restos de experiência científica? Medo, desconfiança, piedade, ataque; e o perigo de nos tornarmos aquilo que combatemos.

 

Em alguns dos contos, os pesadelos se aproximam muito da forma realista dos períodos de vigília e refletem a solidão, a falta de sentido e a medicalização da vida. Em Três dias sem as meninas não se pode afirmar que a personagem esteja em um pesadelo ou em surto psicótico: “Vou sentindo minha cabeça tombar pro lado, a varanda do nosso apê vai dobrando, inclinando, um furor toma conta dos meus olhos que se tornam estrábicos. A paisagem cinza da cidade fica horizontal e uma cólera de dor invade meu pescoço, minha mão treme, tudo fica dobrado, torto, inclinado, até que o mundo fica escuro e a paisagem de outrora desaparece.” Ao mesmo tempo, a literatura se beneficia da ambiguidade de tudo que pode funcionar como metáfora. Em outros contos, o cenário onírico se faz de pura fantasia, apresentando-nos uma festa em que corpos flutuam no céu amarrados por uma corda, feito balões, o efeito lembrando muito as pinturas surrealistas de René Magritte. Um outro momento, tomado de fantasia, é o conto “Passarinho preto”, no qual um homem possui um ninho no lugar da cabeça, com um passarinho dentro – um pássaro morto que canta.  Aqui, elementos típicos dos sonhos, como inversão e transmutação da representação mental acontecem. Chama a atenção a linguagem utilizada, especialmente poética, lembrando-nos que sonhador e poeta muitas vezes são sinônimos populares para descrever a mesma pessoa.

 

 

Como usar um pesadelo traz críticas sociais, políticas e existenciais implícitas. Os pesadelos selecionados mostram um mundo assolado pelo desequilíbrio, pelos transtornos mentais, pelo mau caratismo, pela busca do sucesso propagandeada pelos coachs, pela terra arrasada em que as ervas-daninhas da autoajuda, essa nova roupagem do charlatanismo, encontra para se alastrar; o sadomasoquismo das relações, a violência e a tortura como soluções políticas, findando assim toda a política. No pesadelo coletivo, não há espaço para a democracia. Em “A voz do povo” o ex-presidente é preso e a população decidirá sobre sua morte. A teatralização do inimigo para torná-lo maior e mais abjeto até destruí-lo mostram os caminhos da violência dos estados de exceção. A estética é a mesma que a dos pesadelos, a estética do horror, por isso Bruno Ribeiro nos dá a tortura em detalhes. Não há mais espaço para a subjetividade e por isso não há que se interpretar os sonhos. O homem e a mulher do horror são aqueles que trabalham, consomem, obedecem, frequentam igrejas, defendem a família, a pátria, a tortura contra seus inimigos; odeiam os mais fragilizados e qualquer revolucionário e não conseguem perceber o próprio pesadelo.

 

Outras vezes, o sonho revela a angústia de ver um filho afogado ou de perceber, como se fosse uma peça de dramaturgia encenada, sua família disfuncional e infeliz em detalhes, marcada pelo poder do patriarcado, que oprime mulheres e crianças, gerando conflitos de casamento, paternidade mal vivida, sexualidade mal resolvida, violência doméstica, sonhos e expectativas desfeitos. A recorrência dos espaços pintados de branco, leva-nos sugestivamente aos lugares em que estamos à mercê completa dos outros, hospitais, manicômios e prisões. E como não poderia faltar, Como usar um pesadelo mostra um encontro com o diabo e o recurso onírico da repetição, do espelhamento e do beco sem saída.

 

O sonhador de Como usar um pesadelo é perdido, sem entendimento, fragmentado. A palavra que o assombra é “fim”. Se a recorrência de pesadelos pode gerar medo de dormir, o pesadelo na vigília gera medo de viver. No fundo, os contos de Bruno Ribeiro não estão falando dos pesadelos que temos dormindo, mas daqueles que vivemos acordados. É preciso enfrentar a noite.

 

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Como usar um pesadelo

Bruno Ribeiro

Contos

Ed. Caos & Letras

2020

 


Bruno Ribeiro (1989), nasceu em Pouso Alegre/MG e é radicado em Campina Grande/PB. Escritor, tradutor e roteirista. Autor do livro de contos Arranhando Paredes (Bartlebee, 2014), traduzido para o espanhol pela editora argentina Outsider, e dos romances Febre de Enxofre (Penalux, 2016), Glitter (Moinhos, 2018 / Finalista da 1° edição do Prêmio Kindle e Menção Honrosa do 1° Prêmio Mix Literário de Literatura LGBTQI+), Zumbis (Enclave, 2019) e Bartolomeu (Autopublicação, 2019). Mestre em Escrita Criativa pela Universidad Nacional de Tres de Febrero (UNTREF), venceu o Prêmio Todavia de Não Ficção com o projeto de um livro-reportagem sobre um feminicídio no agreste paraibano. Foi também semifinalista do 3º prêmio Aberst de Literatura e um dos vencedores do concurso Brasil em Prosa, promovido pelo jornal O Globo e pela Amazon, com o conto “A arte de morrer ou Marta Díptero Braquícero”.




Adriane Garcia,
poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019) e Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020.