O jogo é um corpo a corpo com o destino, Alessandro Caldeira

 

por Alessandro Caldeira__

 

Sasin Tipchai 

Costuma-se dizer que o futebol é o ópio do povo com as razões mais esdrúxulas que Chaplin teria vergonha de apresentar. Algumas delas: o povo não pode fugir do trabalho, o futebol aliena as pessoas e as afasta da realidade.

 

Confesso que o último argumento é o que me faz balançar em meus sapatos. Até hoje lembro das palavras de Clarice: o jogo me parece mais uma guerra.

 

Talvez, Clarice, com a sua veracidade e impaciência perante à vida, não soubera que estivesse resumindo o jogo para todos os brasileiros.

 

Antes da guerra ser tratada de forma pejorativa por nós brasileiros, tínhamos orgulho em lidar com a nossa torcida por algum time como um verdadeiro ato heroico.

 

Veja bem: torcer nada tinha a ver com a felicidade para ser considerada uma fuga. Muito menos alegria a ponto de ser o ópio do povo.

 

A torcida brasileira era grega em sua essência: viviam não para a felicidade, mas para o heroísmo.

 

Notava-se os brasileiros saindo de casa, no domingo, cada um se vestindo ao seu modo. Mas o traje jamais era tratado como roupa, como uma vestimenta, mas sim como uniforme. Toda torcida se tornava esguia para proclamar o seu amor pelo clube.

 

Não à toa já fomos o povo que mais cantou o hino nacional. Embora tenhamos a dúvida em relação ao nosso país como bichinho de estimação, se o brasileiro em algum momento chegou a viver e morrer pela pátria foi nos tempos de uma torcida apaixonada.

 

Todo casal brasileiro só realizava o laço matrimonial no ano com o qual seu time tivesse ganho um campeonato.

 

Qualquer ano onde houvesse seca não era considerado o momento para selar uma relação; e logo decretava-se que uma boa sorte no amor é quando o clube do coração tinha sorte no jogo.

 

Houve um tempo em que uma nova vida surgia somente em grandes partidas. Alguns nomes, por exemplo, só foram tipicamente brasileiros após o surgimento de nossos craques. Assim, nasciam milhares de “Edsons”, em 1950, “Alexs”, em 1997, e “Ronaldos”, em 2002.

 

As grandes mortes também aconteciam em partidas memoráveis. Não houve um só torcedor que não morresse assistindo a um grande jogo de sua equipe.

 

Na sua maioria, o grande culpado pelas mortes, vejam vocês: era o coração. Era o tempo em que se morria do coração quem amava demasiadamente.

 

Estou exagerando? Talvez, talvez. O que não posso discordar é que o amor se trata muito mais de morte que de vida. 

 

Aliás, na época em que a morte podia ser pública, os velórios eram realizados em estádios e o hino do Clube era erguido, Bach fazia silêncio.

 

Alguém deve estar se lamuriando neste momento: não é mais assim, não é mais assim. De fato! Eu não quero discordar de vocês. Afinal, o futebol acompanha os nossos atos.

 

A guerra se tornou pejorativa e a morte está distante. Se antes os nossos craques ganhavam um cabelo branco por cada passe e gol feitos em suas carreiras; hoje eles se aposentam ainda com os fios negros.

 

Atualmente, o futebol não é prosa e nem poesia, não obstante tornou-se arte na qual apenas uma classe tem permissão para tocá-lo.

 

Não é espantoso que todos os times joguem iguais? Que o drible à direita de Garrincha, a malandragem de Pelé, o gesto cínico de Romário tenha sido demolido?

 

Ao contrário de Os Velhos Marinheiros, os ventos sopraram contra os campos brasileiros e levaram os nossos sonhos.

 

O futebol brasileiro se reverteu numa eterna arte malfeita, com traços de analistas rasteiros dignos de pintores cubistas.

 

Por fim, o futebol brasileiro ainda representa a vida? E respondo, lamento, em tom soturno: Sim. Transformamos o nosso jogo em pontapés. O futebol que antes era à brasileira, virou perversão.

 

Não mais contemplamos o futebol como verdadeiros artistas que veneram a vida como um milagre; mas em um esplendor desespero de forma que os escaladores de Babel pareçam menos infelizes.


É provável que não tenhamos entendido que se o número de torcedores diminuiu em nosso país é porque somos, semanalmente, menos brasileiros. Por isso, o jogo entre as quatro linhas permanece sendo o maior retrato de nossas vidas. Mais: o jogo continua selando o nosso destino.





Alessandro Caldeira
é jornalista, santista e nas horas vagas prefere postergar qualquer um desses títulos para se dedicar à literatura, música e cinema.