Permanece, | Lubi Prates

 

por Iaranda Barbosa__

 


Lembranças, saudades e distâncias em “Permanece,” de Lubi Prates

 

Um livro que inicia com páginas escuras e clareia na medida em que a leitura avança. Poemas escritos na língua dos invasores, responsáveis pela diáspora do povo negro a fim de subjugá-lo e futuramente exterminá-lo. Povo esse que “Permanece,”. Não à toa o título da obra de Lubi Prates apresenta uma vírgula, remetendo à ideia de continuidade seja em seu território de origem seja em lugares distantes:


[...]

i love a black man and

every day

when he leaves home

what i say is:

don’t forget your I.D.

don’t forget your passport

don’t forget your greencard

 

sometimes, i ask to myself if

our great-grandmother said to our great-grandfathers:

no te olvides de llevar contigo tu carta de manumisión

no te olvides de llevar contigo la prueba de que eres humano

la prueba de que eres libre.

[…]


Lubi Prates traz as equivalências identidade-passaporte-autorização e carta de manumissão-prova de que és humano-prova de que és livre. Ela nos faz refletir sobre nossas estratégias de sobrevivência, sobretudo, em países que nos sequestraram e nos ceifaram de nossas raízes. Perdemos nossa própria língua, mas mantivemos o cuidado com os nossos. Aprendemos a língua do outro para nos preservarmos e seguirmos em frente. Permanecemos por meio das lembranças, na pele, na boca, na cor, no cheio, nos territórios para onde fomos levados:


Hasta aquí, hasta llegar a mí

você traz na boca

todo o gosto do mar

e eu tento adivinhar

inutilmente

quanto oceanos você atravessou

hasta aquí, hasta llegar a mí

para guardar em si

tanta água, tanto sal

em cada gota de saliva.

[...]

: somos filhos da África

e tudo que contamos através dos nossos corpos

fala sobre nós, mas no fundo da memória

guarda nossos ancestrais.

 

Os paralelismos referentes à água (oceanos, saliva, mar) encaixam-se no que Bachelard, nas páginas 94 e 97 de “A água e os sonhos”, diz sobre esse elemento ao afirmar que:

 

A água leva para bem longe, a água passa como os dias. Mas outro devaneio se apossa de nós e nos ensina uma perda de nosso ser na dispersão total! Cada um dos elementos tem sua própria dissolução: a terra tem seu pó, o fogo sua fumaça. A água dissolve mais completamente.

[...]

Em especial, a água é o elemento mais favorável para ilustrar os temas da combinação dos poderes. Ela assimila tantas substâncias! Traz para si tantas essências! Recebe com igual facilidade as matérias contrárias, o açúcar e o sal. Impregna-se de todas as cores, de todos os sabores, de todos os cheiros. Compreende-se, pois, que o fenômeno da dissolução dos sólidos na água seja um dos principais fenômenos dessa química ingênua que continua a ser a química do senso comum e que, com um pouco de sonho, é a química dos poetas.

 

E é através dessa química dos poetas que Lubi Prates nos apresenta amores que se vão, mas que ao mesmo tempo permanecem, nem que seja através de recordações diluídas, esparsas, intangíveis:

 

você não me diz

como segurar as lembranças.

 

você não me diz

e eu estou

diante de uma tela

que embranquece

estes dias.

 

eu tento alcançá-los

mas eles me escapam:

a mulher eternamente

de mãos vazias e

nenhuma história.

[...]

 

Os efeitos diaspóricos e sinestésicos provocados pelos versos de Prates, apresentados em poemas na grande maioria sem título, refletem-se também na repetição de palavras e estruturas sintáticas. Tais recursos fomentam o vai e vem das águas do mar, o subir e baixar das marés dos oceanos, o lembrar e o tentar esquecer amores que deixaram o corpo, a alma e a mente adoecidos:


meu corpo todo tem doído. eu não entendo o que está acontecendo, então não sei nomear.

eu estou dormindo e, quando acordo, sinto o meu corpo e o sentimento é esse, é a dor.

não posso dizer: tenho enxaqueca, mas minha cabeça dói.

não posso dizer: tenho sinusite, mas meu rosto dói. não posso dizer: tenho amigdalite, mas minha fala dói. não posso dizer: tenho gastrite porque já não tenho estômago.

[...]

já não me lembro quando você foi embora porque você ficou.

 

 

As tentativas de libertar-se desse amor que se foi, mas que permanece, machuca e deixa cicatrizes, também aparecem na exasperação da metáfora:

 

você foi embora e eu cortei a mão.


a mão de acariciar seu cabelo e seu corpo a mão de descansar sobre você enquanto eu dormia. a mão que você segurava na rua. a mão onde eu usava o anel que esqueci na sua casa.


você foi embora e eu cortei a mão.


a mão que te abriu a porta, pela última vez.


você foi embora e eu cortei a mão.


meu psicólogo me perguntou o que isso significa?


o que isso significa?


a mão de te possuir, a mão de te libertar não é a mão da minha escrita.

 


O eu lírico necessita acalmar o desespero e, portanto, recorre à tautologia e, ao reiterar, chega à afirmação, ao autoconvencimento, ao autoconhecimento.


Destarte, a solidão, a ancestralidade, as relações amorosas, por mais que pareçam distantes, fluidas, opacas, tais quais uma fumaça branca que se esvai ou a água levada pela correnteza, habitam a voz poética e formam um conjunto de fragmentos que permanece.

 

 

 


Lubi Prates
é poeta editora e tradutora. Tem quatro livros publicados (coração na boca, 2012; triz, 2016; um corpo negro, 2018; sin país, 2018 – Uruguai), sendo o terceiro contemplado pelo PROAC com bolsa de criação e publicação de poesia. Tem diversas publicações em antologias nacionais e internacionais. Organizou os festivais literários para visibilidade de poetas [eu sou poeta] (São Paulo, 2016) e Otro modo de ser (Barcelona, 2018) e participou de festivais literários no Brasil e em outros países da América Latina. É sócia-fundadora e editora da nosostos, editorial, é editora da revista literária Parênteses. Dedica-se a ações que combatem a invisibilidade de mulheres e negros.

 




Iaranda Barbosa, formada em Letras Português-Espanhol, pela UFPE, possui mestrado e doutorado em Teoria da Literatura pela mesma instituição. Salomé (Selo Mirada), novela histórica é sua primeira obra ficcional longa. A autora possui contos em antologias e revistas de arte, assim como diversos artigos científicos publicados em periódicos especializados em crítica literária.