Três poemas do livro Poesia é um lugar que não se revela, de Sidnei Olivio

por Sidnei Olivio__




poesia é um lugar que não se revela

 

o presente

que vorazmente me consome

empurra-me em direção ao passado

à hora original do surgimento

de um corpo mínimo

coberto de sangue e possibilidades

de um corpo mudo

testemunha de um tempo interior


o corpo

um aglomerado incerto

de células e perplexidades

de equívocos e fatuidades

que antecede o pensamento na ilusão contemporânea

do nunca visto (ruminação nítida

que claramente antecipa a idade verbal)


apenas um pedaço da existência

vale então ao poema

o resto tropeça na incoerência das palavras

desconectadas com a verdade que nos acumula

e consome


assim o poema espera atento à descoberta

à procura insone do que o corpo desconhece

mas não há encontro que não seja emboscada

desilusão ou fuga premeditada

(quanto mais se persegue o verso

mais ele escapa

às margens do assombro

ou se revela impróprio e dissonante)


sabe o corpo e o poema enfim

que a simples opção de continuidade

é de fato a falta de uma forma digna

de se deixar de existir


geografia dos lugares inexistentes

 

a palavra

é a ânsia que move os navios

a verve de navegar

por rotas tortas lugares remotos

que arriscamos a chegar sempre

à beira de precipícios

 

a mão empenhada a se desfazer da angústia

do tempo a agulha imantada indicando

norte não costura movimentos

é como dizer de águas

passadas de ausência de ventos

descontroles e derivas

 

é como esperar pela ruína

da realidade na geografia incerta

de novamente recuperar

o equilíbrio firme da terra à vista

e a esperança nos deuses

recriados à semelhança do nosso

desespero

 

(estamos imersos ao desejo

das ondas no incontido e impreciso

gesto de navegar)

 

  

a ideia da poesia não é minha

 

 

1.

os olhos atrás do espelho:

pálpebras flácidas

que não se abrem

por inteiro (

alguma coisa de encanto um canto

que atravessa o silêncio

e não se diz

)

  

2.

pele nua escassa melanina

que recusa o sol

a luz que reflete

o nome apenas

invólucro tênue

como a pena modulando

a palavra

é voo

 

3.

o virtual se desfaz

porque a vida aqui

se expande

o canto aflora

enquanto a flora se empetala

de encanto


4.

primavera sonora –

alguns cultivam cactos

outros semeiam signos

em ondas

o rito do reflexo

ritmo da liturgia

  

5.

toda imagem multiplicada

reluz a nudez

:

pele

tinta

pincel

o papel ainda que longevo

é palco de desejos

e gestos

 

6.

agora a estação dos olhares

aos pares – espelhos translúcidos

luz que abisma e ainda

nesse tempo de ruína

o canto profundo e plácido

é semente que não finda




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SIDNEI OLIVIObiólogo e poeta. Autor de 11 livros de poesia e prosa poética, além da participação em 23 coletâneas, sendo os principais Leituras de Brasil, 2001, Ed. da UNESP e Petali d’Infinito, Accademia Internazionale Il Convivio, Itália, 2002 e “Mapa Cultural Paulista”, Lisboa, Portugal, 2002. Vencedor de vários prêmios literários. Tem publicados ebooks de poesia infantil em português e inglês. Publicações ainda em várias revistas e jornais literários e científicos (zoopoesia).