por Rebeca Gadelha__
O que poderia dizer sobre “A
Filha Primitiva”? O romance, lançado de forma independente pela escritora Vanessa
Passos através da plataforma Kindle Direct Publishing (Amazon), traz uma
história que não é minha, mas na qual me reconheço: ao abordar as desavenças e
diferenças entre avó, mãe e filha - três mulheres sem nome - e as dores
causadas pelo machismo, pela violência sexual, a busca incessante para
preencher vazios, tenho a impressão que Vanessa narra um pouco sobre todas as
mulheres.
Em “A Filha Primitiva” conhecemos a Mãe, uma mulher que acaba de dar à luz a uma menina (que será chamada simplesmente assim, menina) e se vê exaurida mental e fisicamente entre as obrigações como professora, mãe o dever de colocar comida na mesa, pagar contas, o desejo de escrever e o vazio que a assombra: ela não conhece seu pai nem seus avós. “Morreram”, foi tudo o que ouviu dizer sobre os avós. Quanto ao pai, havia a mentira: primeiro, fora embora, depois havia morrido - e a inquietação da Avó ao fugir do assunto. Depois, não restou nada, nem sequer o nome ao qual se agarrar. Porém, um bebê muda tudo. (p.23) Com os vazios cada vez mais presentes, a personagens busca vestígios da história de pessoas que ela nunca conheceu: primeiro, seu pai e depois, a própria mãe [a avó].
Hoje não quis sentir ódio da minha mãe. Quis
entender seus traumas do passado, justificar seus erros do presente. Mas como,
se a sua vida é uma página em branco? Se eu era como uma personagem incompleta,
mal construída, sem porquês nem explicações.
Ela saiu pra igreja, ia demorar. Vasculhei o
guarda-roupa atrás de qualquer vestígio que fosse. Uma foto velha com data no
verso, alguma coisa. Nada. (...) Como pode uma pessoa não ter guardado um
objeto sequer do passado, como pode eliminar as provas, os indícios da
existência de um pai?
Nisto, a autora nos surpreender com
uma narrativa inquietante, crua e sincera que disseca feridas sociais ainda
presentes em nossa sociedade: é o racismo estrutural, que poda vidas e
esperanças, o machismo que mata e violenta diariamente, a maternidade que
compulsória. Ao escrever “A Filha Primitiva”, Vanessa Passos
escreve também a história não contada de tantas mulheres que tiveram a vida
moldada - ou podada - pelo racismo e/ou pela maternidade forçada ou
compulsória. Sua história, mesmo ficcional, é terrivelmente verdadeira e
factual. É assustadora, pois em sociedades como a nossa, sabemos que ela
continua a repetir-se indefinidamente. Não há príncipes encantados nesta
narrativa, assim como estes também não existem na vida real. Há, entretanto, o
poder de contar e [re] inventar sua própria história, (re) descobrir-se através
da escrita.
Agora me dei conta: a chegada da menina me
engravidou de novas palavras.
Fico pensando que escrever é um parto infinito. A
gente vai parindo devagarzinho, letra por letra, que se não saem ficam
encruadas dentro fazendo mal, ferindo a gente feito felpa que entra no dedo.
Tem que tirar com agulha, espremer o pus. Dói parir palavras. Dói mais ainda
viver com elas dentro.
“A Filha Primitiva” é um romance curto, inquietante e doloroso. Suas personagens devolvem a
voz a tantas mulheres com histórias semelhantes que nunca tiveram a chance de
contá-las, de preencher suas próprias lacunas.
Rebeca Gadelha é otaku, gamer e artista digital. Formada em geografia pela Universidade Federal do Ceará, tem um fraco por criaturas peludas e gorduchas. Trabalha com edição de vídeo do Literatura & Libras (@literaturalibras), diagramação de livros e na organização de projetos literários no Selo Mirada. "Reminiscências" (Selo Mirada, 2020) é o seu primeiro livro.