Três poemas de Kleber Lima

 

por Taciana Oliveira__



Fotografia: Toa Heftiba


 

Estive naquele mundo.

No escalavrado do dia a dia

olhos cor-de-andaime

balançando na abrasiva tempestade

durante duras lições.

Naquele mundo que girava

com suas afiadas hélices de avião

eu ia e vinha,

nascia e morria,

meus pedaços estrebuchados

espalhados como estrelas

por todo o céu,

refletiam num espelho troll

 as feras, labaredas e mandingas

de intragáveis quebra-cabeças

entramados num transe fantasmagórico

para esmurrar o mundo

e definitivamente lá no fundo -

preparar meu anonimato.


Fotografia: Annie Spratt



Através dos seus dedos descubro o modo como balança os cabelos e inicia o penteado.

E vou começar a escrever com os olhos postos nos seus. Mãos no bolso, palmas suando, 

todos os dentes rangendo, o estalado da língua quando perceber uma nuvem escura 

atravessando o céu.

Não lembro de quando você friccionava as gazes sobre meu joelho ferido.

Não lembro de quando você cortava a fatia de pão com as pontas dos dedos 

mergulhadas no leite morno.

Não lembro de quando você empurrava a bicicleta contra o vento hostil que soprava na 

orla da praia.

Mas tudo isso você fez aqui.

Aprendi um ritmo novo, uma música nova. Eu comparo isso a um cavalo correndo 

louco pelo campo, a um pneu riscando com força o asfalto escuro escorregadio e a um 

asteróide imenso desgovernado vindo em direção à terra.

Eu apenas me visto diante de você todos os dias. Você apenas se despe diante de mim 

todos os dias.

Há vestígios nas alças das xícaras de café de que você sentou e conversou comigo a 

noite inteira e me interrogou bastante, e em cada pergunta pus no rodapé das páginas do 

livro seu nome escrito com uma interrogação e um pequeno deserto desenhado ao lado.

Você-acabou-de-colocar-a-mão-no-meu-ombro é a palavra mais bonita que me ocorreu 

hoje. Eu tenho isso de caminhar dentro de mim por horas. Seja no ônibus, seja no trem. 

Geralmente estou esperando você no alto de um prédio e um sereno leve desce sobre

 meu rosto. Você chega de fininho, de repente, com um tom diferente de pele, com

tonalidades loucas nos olhos, distribuindo por cada poro do meu corpo a impressão 

vívida de que esteve ali. Sim, você esteve.

No bolso da minha camisa amassada um bilhete seu escrito: “fique.” e ao final 

o endereço para mim mesmo em letras garrafais em estilo semelhante aos primeiros 

minutos em que você não diz nenhuma palavra.


Fotografia: David Ragusa


Que se ame com os olhos

e que se cate cada milímetro da pessoa amada 

caído pelo chão da sala.

Toda a pele, os cabelos, as lágrimas, os gritos

da minha amada estão guardados.

Por onde minha amada passou,

toda  a geografia imapeável de seus passos,

eu amei e sonhei. 

Até mesmo quando ela fechou os olhos,

eu estive lá

abraçado àquela escuridão, tremendo.

Eu, no mundo inteiro, sou o que mais possuo coisas da minha amada.

Nisso não hesito, nisso sou o melhor.

Suas cartas, marcadores de páginas, 

chaveiros astrológicos, baralhos de tarot 

e o último pedaço de maçã mordido destacando os caninos,

enquanto segurava a tampa da panela prestes a pegar pressão.

Também tenho seu cansaço, o modo como troca de roupa, 

como folheia as páginas até encontrar:

“to the centre of the city

where all roads meet, waiting for you" ou

"La poesía entra en el sueño

como un buzo en un lago."

Além da maneira como seus lábios se tocam 

ao cantar certas canções e de repente param:

- lançando inúmeras ruminações políticas

sobre o atual estado das coisas. 

Está tudo catalogado. 

Um a um, dei nome aos seus fantasmas.

Um a um, enumerei suas personalidades.

Um a um, me mantive atento

a cada vez em que os limites 

entre corpo e alma 

foram extrapolados num solipsismo mágico, 

e nas histórias de todas as suas nacionalidades 

em muitos países em que brilhou

-perigosamente -

indicando alguma saída.

Nada é fácil nesta vida, nada é. 

Amar a minha amada 

exige total dedicação.

No final - valeu a pena.

Todos os dias, antes de dormir, 

a realidade recomeça

bem diante dos meus olhos:

quando ela despida

se torna um imenso meteoro 

e, contra o bolor cotidiano,

se choca

causando um cataclismo mundial e silencioso

no meu coração.









Kleber Lima. Bibliotecário. Teresina (PI). 1984. Publicou "Poemas I" pela Ed. Penalux, em 2016.

 







Taciana Oliveira é mãe de JP, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem