A prosa poética de Laila Zanov

 

por Taciana Oliveira __


Oswaldo Goeldi


Santa Catarina

 

Um operário espirra algumas vezes, seu nariz coça,

Ele reluta, tenta conter o incômodo.

Na câmara fria uma parte do teto desaba,

O gelo trincado fere a cabeça do trabalhador.

Soam o alarme, a porta é aberta.

- Querem morrer? Por que não tentam trabalhar direito?

O jovem ferido é arrastado para fora, convulsiona.

A ambulância vem buscá-lo.

Ele retorna ao expediente após três dias de atestado médico;

Uma semana depois é chamado a comparecer no Departamento Pessoal.

Voltará mais cedo para casa.

Nas fazendas de soja o imigrante é útil,

Não há lirismo algum em suas frases curtas.

Pronúncia precária.

- manman, papa, frè...

- Zanmi! Zanmi!

O supervisor o manda calar a boca.

- fatige soti

- Dívida! DI VI DA, PA TRÃO! VO CÊ TEM DÍ VI DA! Entendeu?

Marrom é a cor da luta e do preconceito no Vale Europeu.

 

 

Alzheimer

 

O Senhor Geraldo segue seu caminho com uma boneca ao colo.

Seus passos são lentos e largos, parece intrigado e tenta pisar no centro de sua sombra.

Súbitos emocionais de sua infância se confundem com a realidade presente.

Como dói amanhecer órfão em sua velhice!

Num impulso, ele abre os braços;

Alícia cai de costas. Ele se apavora, uma vizinha se apressa para ajudá-lo.

Ele chora, precisa socorrer sua bebê, não permite que a vizinha se aproxime.

Está desesperado, implora o perdão de Alícia. 

- Sua mãe vai ficar furiosa, minha criança!

Ampara-a e retorna correndo para casa. A filha o encontra, estava a sua procura.

- Paizinho! O Senhor saiu sem avisar.

- Zema, veja! Ela caiu! Ela caiu do meu colo. Foi o velho no chão! Eu estava tentando acertar sua barriga, mas ele continuava, Zema! Ele continuava...

- Pai, eu sou Alícia, estou aqui, estou bem. Vem, paizinho!

- Não, Zema!  Ela está tão calada, não diz nada, e nem chorou ao cair... A nossa menina bateu a cabeça, bateu forte no cimento. Havia a sombra de um homem no chão, a nossa frente, era a imagem escura de um velho, e ele a levava abraçada contra seu peito. Eu quis salvá-la! Vamos! Vamos! Precisamos de um médico!

Alícia chora e o abraça:

- Ela está bem, não precisamos de um médico.

Não! Não, Zema! Não somos nós. É a menina, a menina precisa. É para ela...

Será crueldade da noite devolvê-lo com aparente sarcasmo aos seus dias de sol?

Todos esperamos o milagre de uma morte calma, sem sustos.

Sem sustos!

O Senhor Geraldo divaga nos fragmentos de sua essência.

Riso a riso, dor a dor, pedra a pedra...

Abandona-se sem limitações ao passado.

O esquecimento é um antídoto transgressor, atua muito além da névoa fria da decomposição física.

Que os nuncas de suas memórias jamais o abandonem!

Adeus às tristes verdades!

Bem-vindas as adoráveis ilusões!

 

 

Insciência

 

Floresce o lodaçal.

Quem de lá vem?

Duas idosas de mãos dadas.

Acompanho a lentidão de seus passos diante de meu portão.

Quem conduz quem?

Um carro de som anuncia: "Adorados Irmãos, é amanhã às 20 horas. Venha e receba a unção do livramento! Convide seus familiares para a Campanha da Redenção com o Pastor sergipano Malaquias de Cristo, na Igreja Amantes do Altíssimo".

"Malaquias do Diabo?". Penso. "Malaquias fdp!". Penso.

- Amém e aleluia! Grita a vizinha erguendo os braços e aplaudindo a vinda do impostor. "EEEEE... O Pastor Malaquias de Cristo vem! Glória ao Pai!".

Minha boca espuma.

Estou louca?

Sairei e seguirei em direção ao lago,

Quero ver sua película verde mais espessa do que na semana passada.

Desde que espalhei o boato da maldição do lago, ganhei-o da ignorância comunitária.

Está sempre mais, e mais, e mais belo. Há um ciclo perfeito em sua vitalidade.

Ninguém mais perturba a paz de suas criaturas, a vegetação o circunda autoritária.

Se cheirar adoece!

Se tocar adoece!

Se entrar morre!

Joaquim morreu por tentar se exibir: afundou, prendeu a respiração, morreu.

Que bom que Joaquim morreu! Estava matando seus filhos, sua esposa, antecipando mortes outras.

Tantas!

Mas, muito bem, Seu Joaquim! O senhor morreu.

E não é que choraram sua morte? A própria Edra foi capaz de dizer durante o velório: "Ele era daquele jeito rude, mas era bondoso".

Mentirosa!

Sigo!

Estou cada vez mais perto.

Choro o Deuzebu pisando em minha sombra abstrata.

Sou um leve vulto entre folhas, ramagens, orquídeas, bromélias...

Ali está! A loucura jaz em sua superfície e profundeza.

A loucura da morte que sustém a vida

Beijo levemente seu veludo verde.

Meu coração pulsa.

Um dia morreremos.

Sobreviverá a selvageria virtual? A intolerância ambiciosa dos imbecis?

 





Laila Zanov
: natural de Itajaí, SC, é poeta, cronista, contista, roteirista; senhora de muitas fobias e de algumas ousadias. A loucura, o preconceito, a solidão, a morte, a noite são temas recorrentes em sua arte poética. Zanov escreve desde a adolescência, mas suas primeiras publicações datam de julho deste ano. Referência da imagem:   Kees Van Dongen - The Corn Poppy, c. 1919