por Adriano B. Espíndola Santos__
No
primeiro dia, Wiliam me deu uma lição de moral: “Saiba, mocinha, aqui somos
todos iguais. Nada de títulos ou privilégios”. Ali tomei ciência de que não deveria
chamá-lo de pai, como fazia no resto do mundo. Ele já não me chamava de
filhinha, nem vinha com voz de denguinho, amorzinho. De agora em diante, para
todos os efeitos, porque era sua funcionária, deveria tratá-lo simplesmente por
Wiliam. Entendo que esnobei, em alguma medida e em algum momento, amparada por
minhas condições, de filha única e dona de mim, infelizmente. Ele e mamãe me
ensinaram a ter força e independência. Mas extrapolei. Essa seria, talvez, a derradeira
oportunidade. Depois da admissão formal, passando pela psicóloga e pelos
recursos humanos, pedi um tempinho, precisava ir ao banheiro: para chorar. Ver
meu pai tão rigoroso só me fez remoer a agonia. A questão toda é por causa de
Claudinho. Apaixonei-me perdidamente, posso dizer assim. Conhecia Cláudio Tomaz
desde o início dos tempos, quando era uma pirralha birrenta. Nossos pais foram
grandes amigos: o meu, da indústria têxtil; o dele, da indústria da moda. Ou
seja, combinavam em projetos e vivências. Claudinho, sendo da minha idade, ia muito
lá em casa, passar dias, finais de semanas… e, numa dessas, demos nosso
primeiro beijo. Tão singelo, tão puro, entranhou e agarrou-se às minhas
hemácias, células, corpo todo. Na adolescência nos afastamos; ele foi estudar
nos Estados Unidos, na Califórnia. Bem, estudar, estudar, creio que não, pelos
relatos que ouvi. Dois anos depois, voltou ao Brasil dispensando os reles
mortais – incluindo eu. Desde aí, não estudou mais. Disse ao pai que queria
trabalhar e entrou nos negócios da família – o mal está aí, tudo de mão
beijada. Carrão, apartamento próprio e uma grande franquia para “cuidar”. Voltamos
a nos falar. Ele, num momento de êxtase, ligou para mim e falou que morria de
saudades. Fui ao seu mega-apartamento, na Zona Sul. Não liguei para os
detalhes, só para a disposição de um homem apaixonado. Parecia mesmo estar
carente e cheio de amor para dar. Eu acreditei, caí como uma patinha. Já
andávamos de um lado a outro de mãos dadas. O namoro ocorreu de forma natural.
Papai ficou contente – mas com os dois pés atrás. Falou que tinha muito medo de
que eu sofresse. No entanto, alegava que, na vida, uma hora ou outra, seria
inevitável sofrer. Enfim, aceitou. Claudinho, aos poucos, foi me deixando de
fora de muitas viagens, saídas com a equipe, jantares refinados etc. e tal. Fiz
o possível para entender, no entanto, num belo dia de sol, doida para ir à
praia, levei um bolo astronômico. Ele sumiu. Desligou o telefone. Ficou três
dias incomunicável. Quando retornou, com a cara mais lavada, falou de
sequestro; contudo, para preservar a família, não buscaria ajuda policial.
Aquilo era absurdamente esquisito, ilógico. No final de semana seguinte, fomos
à sua casa na serra, em Petrópolis. A ideia era descansar. No carro, ao procurar
o cabo do carregador do celular, a constatação: uma trouxa robusta de cocaína.
Perguntei o que era, e ele quis jogar pela janela. Segurei como se segurasse um
álibi, ou sei lá o quê. Tivemos uma briga homérica, ou melhor, nuclear, e Claudinho
me largou na estrada, quase me empurrando do carro. Liguei para o meu pai. Ele perguntou
o que estava acontecendo, assolado com o meu estado, o meu choro convulsivo e a
minha voz embargada. Como pai, instintivo, detectou que seria briga de namoro; nada
banal. Em menos de dez minutos, chegou com um batalhão de seguranças. Levou-me
ao hospital, onde constataram lesões. Sim, Claudinho apertou o meu braço, na
luta, em tempo de o arrancar. Havia um arranhão imenso no meu rosto, que descia
da têmpora direita parando próximo ao queixo. Foi o desespero que fez Claudinho
tentar me segurar pelos cabelos. No aperreio, penso que a mão escorregou e
tirou uma lasca considerável de pele. O sangue percorreu o meu pescoço e o meu
colo. Papai decretou que os seguranças o procurassem e dessem um jeito no
“maldito”. Eu não consegui entregar o caminho que Claudinho havia pegado. Não daria,
também, porque ele entrou num pequeno caminho que corta a estrada. À noite, já
em casa, soube, pela televisão, que o carro de Claudinho havia se chocado contra
uma carreta. A morte aconteceu praticamente no ato, suponho. Ele sequer sofreu.
Eu estou aqui, agarrada ao passado, me martirizando por não ter ajudado a
tratar a doença dele: a dependência química. Mas, fazer o quê? Não tinha o
menor conhecimento. Não tive a sensibilidade para constatar o óbvio. Estávamos
cegos. Claudinho, num canto bem guardado no coração, ainda é o meu amor. Papai,
ou Wiliam Donato, quer me ocupar, me livrar dos perigos de uma sobrecarga de sofrimento.
Ainda sou nova, tenho direito de viver. Um dia – ainda – quem sabe. Viver.