por Yvonne Miller__
Nem deu tempo do alarme tocar quando o gato já me
acorda. Ele tem seu sistema próprio, bem elaborado durante os anos,
extremamente eficaz. Começa com miados ao pé da cama.
Sempre suspeitei que existe algum hormônio responsável
por nos incomodarmos com o choro de uma criança. Quanto menor a criança, maior
o desespero que sentimos quando chora. E fazemos de tudo para que se
tranquilize e pare de chorar. Isso é: damos carinho e damos comida. O choro
cessa e agora, trabalho feito, o hormônio dissemina uma sensação de paz e
tranquilidade pelo nosso sistema nervoso. Garante-se assim não menos do que a sobrevivência
da espécie humana. A natureza é sábia. Tão sábia inclusive, que não me confiou
uma criança, e sim, um gato. O mesmo gato que neste instante está miando ao pé
da cama. Ele deve saber da existência daquele hormônio que faz com que um
crescente incômodo se espalhe por meu sistema nervoso e me faz acordar. Mas eu lembro
bem das aulas de Psicologia e sei que, se eu levantar agora para encher a
tigela dele, Pavlov e seu cachorro vão me castigar pelo resto da minha vida
(ou, no mínimo, pelo resto da vida do gato). Por isso mantenho os olhos
fechados com determinação e tento ignorar os miados, cada vez mais longos e
dramáticos. Ele sabe o que faz – sua performance não carece de credibilidade.
Mas eu careço de sono. Então me viro para o outro lado, enfio a cabeça embaixo
do travesseiro e tento dormir de novo.
Esse é o momento quando o gato passa à segunda fase.
Sinto logo o colchão se afundar com o impacto do seu pulo e, segundos depois, o
focinho molhado e seus bigodes fazendo cócegas na minha nuca. Mudou de
estratégia: agora está ronronando, fazendo-se de simpático. O pior é que
funciona.
— Salém — digo com voz meiga, abafada pelo travesseiro.
— É muito cedo, Salém.
— Miau.
Ele já sabe que estou acordada; erro meu, não devia
ter falado. Mas agora é tarde.
— Miau! — Bem pertinho do meu ouvido.
O hormônio desgraçado já começa a trabalhar de novo.
Carinho ou comida? Vou tentá-lo com carinho.
— Vem, Salém.
Levanto um pouco o braço, ele pula por cima de mim e
esfrega a cabecinha na palma da minha mão. Acaricio o pequeno corpo veludo e
hoje tenho sorte: ele se deixa enrolar pelo carinho. Deita ao meu lado, o lombo
quentinho encostado na minha barriga, e me concede mais 10 minutos de sono.
A terceira fase é a pior. Inclui garras e dentes.
— Salém! — grito desta vez, enquanto sacudo
violentamente a perna para catapultá-lo para longe. Fricciono meu pé dolorido e
informo ao gato que esta noite dormirá na sala. Mas eu sei que não adianta. Com
um pulinho ele simplesmente se penduraria na maçaneta e abriria a porta. Acha
que gato é besta? É nada. Aliás, ele já está na sala, preparando seu último
trunfo. Ganhou. E ele sabe que eu sei. No fim das contas não sou muito
diferente do cachorro de Pavlov. Já ouço suas garras arranhando o sofá novo.
— Tô indo! — aviso, e o barulho cessa num instante.
Quando chego na cozinha, ele já está sentado ao lado
da tigela, esperando, com olhar inocente. Boa parte da ração que coloquei no
pratinho antes de dormir continua aí, agora com um aspecto menos apetitoso. Além
de sádico e manipulador, ainda é bonequeiro! Pavlov provavelmente faria o certo
e daria uma lição para ele. Insistiria que coma os restos de ontem e só então
providenciaria ração nova. Mas então olho para os arranhões vermelhos e as minúsculas
gotas de sangue no meu pé, olho para o sofá já-não-tão-novo com os fios soltos
e decido que prefiro ter paz do que ter razão. Abro a gaveta e pego um sachê.
— Salmão tá bom?
— Miau.