A caixa preta, de Geórgia Alves

por Iaranda Barbosa___





Desafiadora. Esta é a leitura de "A caixa preta", de Geórgia Alves. O leitor apenas tem dois caminhos: Dar-se por vencido ao se perder no labirinto formado pelo universo de Évora, em meio a mentiras, ódio e guerras internas e pela Recife adoecida, epidêmica; ou sentir-se impelido a adentrar no jogo perigoso de seguir com a leitura a fim de encontrar um fio de Ariadne. Então:


Neste cenário, onde o último dos sentimentos escapa da caixa, surge o que chamam de esperança, em plena pandemia, não havia outra coisa a fazer, senão dar, de uma vez, a voz. Uma que seja, à existência dela que não soube o que fazer por treze anos.


Era o último demônio liberto, esteve este tempo todo preso no fundo da caixa. A esperança. Precisa encará-lo de frente agora. E é logo.


 

Seria Évora a nova Pandora? Ou seríamos nós, pandorianos, que, movidos pela curiosidade, abrimos a caixa preta oferecida pela autora através de uma narrativa de estrutura “caótica” para representar o caos que estamos atravessando, ou melhor, que sempre atravessamos, mas só agora nos demos conta, pois fomos obrigados a parar nem que fosse por alguns dias.


Fragmentada. Assim é a maneira que nosso cérebro precisa processar, simultânea e diariamente, as imagens advindas do passado, do presente e das projeções do futuro. Assim é a da moça simples que encontra na fotografia uma válvula de escape para seus males. A narrativa se fragmenta tal qual cenas lidas, observadas, contadas através de negativos de filmes fotográficos que colocamos contra a luz ou que aos poucos são revelados em uma câmara escura, tais quais as negativas que Évora se enfrenta em plena escuridão a fim de revelar para si mesma o que tanto procura:


É para mim que deve responder? É para si mesma. Quando transcende a condição do modo de olhar narcísico e egoísta? Digo do ego mesmo Pensa no corpo que habita – A matéria dá origem ao sentimento ou é o contrário? – Este modo de pensar fez mudar tudo? – Sem prévia intenção? – Responde Basílio – É preciso continuar havendo duas pessoas. Amar só serve em liberdade.


Conectada. O desenrolar dos conflitos se conectam ao cinema, à música, à poesia, à prosa, às artes de modo geral e, portanto, há um apelo à imagem às vozes intercruzadas, imbricadas em narrador externo, primeira, segunda, terceira pessoas. Conexão da protagonista consigo mesma. Seria Bio um amigo imaginário? Não à toa Bio é o porteiro, guardião do portal, do ponto de passagem, do lugar por onde as pessoas são obrigadas a passar, local de trânsito, por onde Évora é atravessada por lembranças, por sua Biografia, pela própria realidade:


E é porque anda furiosa, a senhora não cansa de querer ser boa pro mundo? Bio, estou em casa, trancada a ponto de pegar o carro sem motivo e bater numa pilastra. No mesmo espaço de garagem onde todos os dias o manobro. Sei dos meus prejuízos. Viu o carro recém-chegado da oficina ser roubado. O que vou fazer? Bater no porteiro porque me chama de onça morta? Ou pedir a você que faça isso por mim? Já chega.


Plural. Várias são as caixas ali referenciadas. Apesar de a caixa da fotografia estar em evidência. Meu primeiro pensamento se voltou para a caixa de um avião, inquebrável, repleta de mistérios, respostas, soluções, descobertas. Mas um detalhe é importante, vital, diria: só temos acesso à caixa preta, só há necessidade de abri-la quando um acidente acontece, quando muitas vidas se perdem de uma só vez, tal qual acontece na pandemia que atravessamos. Sufocadas. E nós ficamos aqui. Órfãos de despedida. Quais desastres aconteceram com a personagem com nome de tragédia? Seria Évora. Preta. A própria caixa?


Incômoda. Mas para que serve a arte senão para incomodar? Para nos deixar desconfortáveis, perplexos? O pedagogista e filósofo John Dewey diz que quando ficamos perplexos tentamos estabelecer relações novas e diversas com o que já se conhece e com experiências e signos outros. Assim, o ato de conhecer requer uma posição ativa do sujeito. É dentro desse incômodo, desconforto e perplexidade que nos deparamos com uma situação, infelizmente, corriqueira: um assalto. Porém, ao mesmo tempo, com um convite à reflexão:


Só tenho vinte reais. Tenta argumentar, por favor, fique com a carteira, deixe a bolsa. Há nela fotos 3x4 dos filhos, registro dos rostinhos deles, ano a ano, as mudanças. É que sou fotógrafa, trabalho, não posso acompanhar nem guardar tais expressões se jogar fora não as verei de novo, nunca mais, quero dizer, as expressões de rosto, de memória se perdem.


A sensação de vazio por perder não o objeto, mas o momento registrado numa imagem num papel. O que é mais angustiante: não poder olhar para a imagem e rememorar ou olhar a imagem e não identificar as pessoas, o momento, as sensações, os cheiros, os sabores? A fotografia captura o instante, mas não o que estava por trás dela e todo o contexto.


Ilógica. Que lógica podemos cobrar da literatura e da Recife onde Évora habita? Uma ilha-cidade-cidade-ilha-aterrada. Onde moradores da corte e da realeza, do alto de suas torres, permitem que anjos subam sozinhos até as nonas nuvens para que se espatifem no asfalto quente enquanto cachorrinhos tranquilamente fazem xixi. Onde palafitas são cortadas pelos rios e dos cartões postais. Onde as fronteiras fluidas, fluviais atuam na imaginação dos moradores a ponto de provocar boatos que estouram barragens, tais quais as revelações que arrebentaram o coração de Évora, fazendo-a desaguar em uma realidade onde poucos nadam e muitos se afogam. 


 

 

 

 

 


Geórgia Alves é jornalista, durante a adolescência viveu a experiência de ser modelo, como a personagem, conquistou bolsa de estudos, mas as coincidências terminam aí, não fosse pelo fato de esperar ser modificada pelo gesto da fotografia. O que guarda uma imagem? Com dois filmes, “O TRIUNFO" e "Grace", lança o terceiro, "Apartamento". Participa de coletâneas de contos (Recife de Amores e Sombras, CAPA) e crônicas (Cronistas de Pernambuco, CARPE DIEM). Autora da novela "Reflexo dos Górgias" e do romance "Filosofia da Sede". Professora de Artes. Nasceu para ser bailarina, mas como toda brasileira, aprendeu a escrever para viver de Arte.

 

 


Iaranda Barbosa, formada em Letras Português-Espanhol, pela UFPE, possui mestrado e doutorado em Teoria da Literatura pela mesma instituição. A referida novela histórica é sua primeira obra ficcional longa. A autora possui contos em antologias e revistas de arte, assim como diversos artigos científicos publicados em periódicos especializados em crítica literária