Quatro textos de Argentina Castro

 por Argentina Castro__





Foto Mohamed Nohassi


I

Eu acordo e durmo na força do ódio!  E não, não há nenhum deus que possa vir me tirar desse lugar.
Acordo e durmo no limbo, no lodo, na fúria, no morno.
Nenhuma estrela cadente atende meus pedidos.
Não alcanço o céu e nem asas de querubins.
Acordo e durmo vendo sujeiras.
Meus olhos, mente e corpo seguem exaustos.
Alma minha já nem fede e nem cheira.
Espalho o horror que sinto, onde quer que minh'alma for.
Não são os lugares, nem as pessoas.
Sou eu e toda essa falta de sentido.
Viver ou morrer é só uma questão de perspetiva.
Sigo como um morto-vivo.
Aguardo com a força do ódio sete palmos de chão e umas pás cheias de areia sobre esse corpo já carcomido de dor e horror.
Não há casa verde e nem sorvete que me salve.
No mais, o relógio me lembra que cada dia tem 24h e eu tenho 45 anos.
Quase metade de um século num planeta de abutres.
Sorte da vaca magra que morre no sertão de sede e de fome e aguarda a festa das aves carnívoras que sobrevoam seu corpo preste a exalar o cheiro da morte.
A mim, resta uma rede e um pedaço de teto.
Ainda não consigo morrer o suficiente.
No mês amarelo de valorização da vida, eu bato altos papos com a morte!
Traiçoeira e certeira, ela rir da minha cara de pavor.
"A vida é pavorosa, não é?"
Ela me pergunta…

 

II

Eu gostaria de não ter toda essa fúria dentro do peito.
Eu gostaria de manter-me calada e sem gritos
No mais profundo silêncio e escuro que me habita.
Eu gostaria de me trancafiar aqui, somente aqui, dentro de mim com meus botões, meus medos, meus palavrões.
Eu mesma ser minha mãe e me colocar no colo, ser minha irmã pra comigo brigar.

Gostaria também de ser planta que cheira e acalma
Já pensou, um pé de cidreira correndo solto dentro do  meu corpo?
Eu queria toda forma de silêncio.
Hoje, eu quase morri. Levei uma pancada na cabeça, enquanto o carro quase batia. Não consegui dizer feliz Natal para o motorista de aplicativo que, comigo, quase morria.
Só me faltava essa, dividir a hora de  minha quase morte, com um homem. Ainda mais um homem desconhecido. Mas que diferença faz se ninguém os conhece, no final? Afinal, os homens são todos iguais?


III

Tarja preta
pra gente ver o rosa e também o
azul e ainda os pássaros
e tudo o que é verdadeiramente
importante e belo.
Sobre e, dentro de nossas cabeças, toda (des)ordem de coisas..
Pensem nas mulheres de Cabul!

"Pensem nas crianças, mudas, telepáticas
Pensem nas meninas, cegas, inexatas
Pensem nas mulheres, rotas alteradas
Pensem nas feridas, como rosas cálidas"

Que meu coração é triste
e meu silêncio é filho dos absurdos
e em  minh'alma, tambores batem de revolta.
Joelhos, costas, cabeças, pés, junta dos dedos das mãos.
Fadiga, coceira.
Insônia, mas tudo isso é besteira, frescura, mentira e conversa pra boi dormir.!
Devem dizer o mesmo das mulheres de Cabuh. Devem dizer!
Eu que nunca ligo pro que dizem
Eu que sigo atenta pra tudo que dizem.
Eu, mulher da palavra, escrevo para que, dentro, a chama siga acesa.
Por fora, tudo é breu e gente que urubu sobrevoa.
Os cinco sentidos aguçados
Como quem quase morre, todo dia, devoro silêncios.
Um pássaro que, do alto de sua solitude, só observa e se aquece para o eterno bater de asas.
Voar e ser passarinho, é sonho de quem anda na contramão.
Três da manhã e minha única inveja na vida é de quem deita e dorme, como
quem morre, sem sentir dor.

 

IV

Nada do que dizes, alcança meu coração.
Aqui não cabe tuas inverdades.
Não abro cadeados pra charlatão.
Desde sempre também observo olhares, falas, comportamentos

e, diferente de você, não subestimo ninguém.
A burrice de todo e qualquer ser humano consiste nisso:

se achar Deus e, portanto, perfeito!
Mas Deus não és. Deusa, muito menos.
Estás mais para ratazana, espírito de porco com bico de urubu,

que goza sobre carniças.

Adoras um deus bélico, o meu é toda forma de amor!
Poema- afeto- abraço- poema!
Consciência de classe!
Tudo o que sei, em tudo o que sou.
Ninguém me conhece ou, se conhece, é só um pouco do que finjo ser!
Não, não se engane com a verdade que eu passei pra você!
Você não é o que diz e eu, muito menos!





Argentina Castro
 - socióloga,escritora e fundadora da Biblioteca Comunitária Papoco de Ideias