Tudo quanto é gente tem amores malfadados | Luiz Henrique Gurgel

por Taciana Oliveira__




Nesta edição um bate-papo com o escritor Luiz Henrique Gurgel. O jornalista, professor e autor do livro de contos “amores malfadados” (Editora Primata, 2021), confessa: Acho que me “imaginei” escrevinhador quando numa outra publicação comecei a fazer umas “reportagens-crônicas” ou “crônicas-reportagem”. Acho que foi aí que me senti mais do ramo. Mas ainda tenho problemas com essa identidade.

 

1 – Na epígrafe do seu livro há um trecho de uma correspondência de Mário de Andrade para Manuel Bandeira, onde ele confessa desencorajado: É estúpido a gente estar imaginando em literatura numa época destas em que nem se sabe o Brasil em que irá dar. Na sua percepção ser escritor no cenário atual é um ato de rebeldia ou de coragem?

 

- Pois é, achei muito curiosa aquela carta, tem tudo a ver com o que a gente vive hoje no Brasil. E pensar que o desabafo dele já tem quase cem anos. Mas são as duas coisas, rebeldia e coragem, que andam sempre juntas, ainda mais agora. Acho que a gente, por um lado, vive um momento privilegiado, uma mudança que é, provavelmente, a mais radical da história humana. Mudança de paradigma mesmo, mudança cultural global, a mais global de todas e em todas as esferas humanas. E aí ninguém sabe direito aonde isso vai dar, por isso tantas reações, por isso os ditos conservadores estão tão desesperados e reagindo violentamente, é um velho mundo que se esvai. Por outro lado, este é o grande perigo. Se há 50 anos o mundo podia acabar com uma hecatombe nuclear, agora são as mudanças climáticas que estão aí, concentração de renda, um novo fascismo ou coisa que o valha, destruição mesmo. Enfim, momento bem cruel da história... Mas sou meio tagarela, por vezes, me empolgo e escapo das questões... Na verdade, sou apenas um veterano investigador e curioso das coisas do mundo que resolveu desengavetar uns contos e botar a cara a tapa. O bom de estrear mais velho é que o couro está mais duro. Por isso acho que essa moçada da faixa dos 20 e 30 que está escrevendo tanta coisa boa, eles e elas é que são os grandes rebeldes e corajosos do cenário atual. É uma necessidade.

 

2 – Nos seus contos podemos encontrar diversas citações musicais. Como você descreveria a importância da música na tua produção literária? De que forma ela te influencia?

 

Para usar uma frase famosa do Nietzsche, que já virou clichê, “Sem música a vida seria um erro”, para não dizer impossível. E acho isso mesmo. Não conheço ninguém – e duvido que haja alguém assim na face da terra – que não goste de música. Inclusive os que dizem não gostar. Musicalidade é atributo humano. É como simbolizar, e música é uma das formas mais maravilhosas de simbolizar, figurar. Lembro de uma coisa que não tem exatamente a ver com música, mas com simbolizar, com o ler, que foi o filme “Uma noite de 12 anos”, a história do ex-presidente do Uruguai, Pepe Mojica, preso na ditadura militar, e que ficou cerca de 10 anos sem poder ler absolutamente nada, confinado em solitárias. Ele fica à beira da loucura, de perder a lucidez. Lembro de uma cena em que ele está para ser interrogado e pede para ir ao banheiro. E no lugar de papel higiênico, tinha umas folhas de jornal. Ele fica desesperado com aquilo e pega folhas do jornal velho e esconde na roupa para ler depois. Podia ser até bula de remédio. Imagino a música na vida da gente um pouco desse jeito. As canções entraram naturalmente na boca e na mente das personagens dos contos, é poesia musicada, canto-palavra. Um dos contos, “Pecado original”, foi pensado a partir daquela canção maravilhosa do Caetano. Não que a história tenha algo a ver com a canção ou com a Sonia Braga no filme, “A dama do lotação”, outra maravilha, mas a personagem vive um pouco daquelas angústias, que mesclam desejo, pecado, remorso, fantasia, ingenuidade etc etc.  Todo mundo tem músicas e canções que fazem parte da própria pele. A gente pensa, fala, reage usando as canções, as letras das canções. De Marília Mendonça a Britney Spears; de Nelson Cavaquinho a Frank Sinatra; de Alceu Valença a Edith Piaf e por aí vai. Por que será que tanta gente, na hora do casamento, pede o mais famoso movimento da Sonata ao Luar, de Beethoven? Ou algum sertanejo, até música dodecafônica está valendo.

 

 

 3 – Personagens como Shirlei Sombra e Malvina carregam as angústias do universo feminino, mas em “amores malfadados” você vai além e nos contempla com uma multiplicidade de perfis psicológicos tão ricos. São homens e mulheres que transitam na sua grande maioria em cenários da cidade de São Paulo. Como você concebeu essa estrutura narrativa? Você partiu de uma seleção de contos já produzidos ou trabalhou com a proposta de um tema estabelecido?

 

Acho que boa parte dos contos poderia se passar em qualquer metrópole brasileira, em Recife, Porto Alegre, Salvador, Belo Horizonte, mas algumas foram pensadas mesmo em São Paulo, é verdade. “O ponto difícil da trama”, com a Malvina, se passa numa cidade do interior do Ceará, foi o que imaginei. E você tem razão, a ideia de perfis distintos foi proposital, eu queria mostrar – não sei se fui de todo feliz – era justamente que tudo quanto é gente tem amores malfadados no currículo – até os ditos casais perfeitos, únicos e que se conheceram na maternidade (olha só, sem querer veio música: “nossos destinos foram traçados na maternidade”, como cantava o Cazuza), e que estes desamores geram uma infinidade de coisas. Só faltou uma história de amor malfadado entre duas mulheres, algo que não consegui terminar em tempo. Aliás, tem até uma história em que os protagonistas são, na verdade, dois cães... Até agora só uma pessoa me escreveu questionando isso. Mas a maior parte era de histórias engavetadas e que depois eu fui mudando para que se encaixassem no tema do amor que não dá certo e que tivessem canções.

 

4 – Sua trajetória profissional é ligada ao jornalismo e a pesquisa musical. Quando se inicia a tua história com a escrita? Quando você se reconhece como escritor?

 

Engraçado isso. Sempre quis escrever, quando fui para o vestibular fiquei entre Jornalismo e Ciências Sociais, o que acabei fazendo. Aí fui para o magistério e tempos depois, nessas reviravoltas da vida, é que fui trabalhar numa editora que fazia publicações e exposições sobre música brasileira até ir parar numa revista de bordo, que se distribui no avião para o passageiro ir se distraindo. Acho que me “imaginei” escrevinhador quando numa outra publicação comecei a fazer umas “reportagens-crônicas” ou “crônicas-reportagem”. Acho que foi aí que me senti mais do ramo. Mas ainda tenho problemas com essa identidade... Eu pago minhas contas dando aulas, cursos de formação e fazendo uns freelas por aí, que é o nome que se dá para o trabalho precarizado no jornalismo.  Há um autor que eu gosto muito, que merecia ser mais divulgado, o Ariosto Augusto de Oliveira, que se apresentava como um fazedor de tudo: de vendedor de enciclopédia, passando por professor de redação, gerente industrial, escritor e ex-marido de duas ou três pessoas. Eu estou mais para o Ariosto.

 

5 – Quais nomes você destacaria como responsáveis pela tua formação artística?


O que eu tenho é uma formação sentimental com alguns autores e obras. De pouca gente posso dizer que tenha lido quase tudo, a parte de poesia do Drummond, por exemplo, eu li. Desde a adolescência. Mas esse não vale porque nunca se para de ler Drummond, ele serve para a vida, e a gente está sempre conhecendo, buscando entender e sentir aquela poesia. Eu tenho mania por algumas obras, em geral, quase todo ano leio Memórias póstumas, do Machado, Memórias de um Sargento de Milícias, do Manuel Antonio de Almeida, ano sim, ano não, pego Grande Sertão... A trabalho, com meus alunos, ou por puro prazer mesmo. Mas jamais teria a petulância de dizer que são “minhas influências”, quem me dera! Tem aqueles e aquelas caras que marcaram o coração da gente: João Antônio, Ana Cristina César, Dalton Trevisan, Clarice, Graciliano, Guimarães, o Ariosto que citei e muito mais, fora os estrangeiros. Eu gosto do que todo mundo gosta. Mas não são influência, não. Sem falar no povo da poesia, Bandeira, Hilda Hilst, Adelia, aí vai embora. Mais recentemente fiquei apaixonado por aquela polonesa que tem um nome que parece sopa de letrinha, mas que aprendi mais ou menos a pronunciar: “Vissauva Schimborska” e se escreve Wislawa Szymborska. E tenho uma deficiência enorme com os contemporâneos, mas gosto do João Anzanello Carrascoza, do Sergio Sant´Anna. Tem esse chileno incrível também, o Alejandro Zambra. Aqui mesmo na Mirada tem tanta coisa surpreendente. Por isso, nós que estamos meio à margem, precisamos trocar figurinhas, trocar livros, nos conhecermos, nos lermos. Mas no fundo sou um velho marinheiro de primeira viagem.

 

6 – Você está trabalhando em algo novo?


Na verdade, depois de amores malfadados eu fiquei concentrado numa pesquisa acadêmica, justamente sobre Drummond, só agora vou abrir a gaveta empoeirada para ver o que tem lá. Por enquanto não passam, creio, de promessas, ou pequenos delírios. Como costumo dizer aos meus alunos, agora é bunda na cadeira e trabalhar, não tem outro jeito e ainda assim o risco de não sair nada é enorme. E a gente começou a falar da carta do Mario de Andrade – que foi um maravilhoso orientador “espiritual” dos maiores escritores do Brasil -, vou terminar lembrando de outra que ele respondeu para o Fernando Sabino, que lhe mandara seu primeiro livro de contos, e a quem Mario sequer conhecia. Gentil como era, e que sofria de “gigantismo epistolar”, pois trocou cartas longas com dezenas de escritores, respondeu e disse ao Sabino, que tinha 19 anos, mais ou menos o seguinte: se ele tinha uns 20 ou 25 anos, então havia alguma esperança, era uma boa promessa como escritor. Mas se tivesse uns 35, não podia lhe dar aplauso e neste caso o livro dele seria medíocre. No meu estágio de vida, já me livrei das duas coisas.


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Luiz Henrique Gurgel é paulista de Santo André, professor que se debandou para o jornalismo há mais de 20 anos. Trabalhou com projetos editoriais do Estúdio Elifas Andreato, em São Paulo, onde fez parte da equipe de criação e foi um dos editores da revista Almanaque Brasil, extinta publicação de bordo da TAM Linhas Aéreas; ainda com Elifas foi pesquisador e redator da série em fascículos “História do Samba”, lançada pela editora Globo. Também participou da equipe de programação da Galeria Olido, centro cultural da Prefeitura de S. Paulo, logo após sua inauguração em 2004, responsável pelas atividades com literatura. Como free-lancer, teve reportagens publicadas por Caros Amigos, Revista Brasileiros, Diário do Grande ABC entre outros. Atualmente trabalha com projetos educacionais e está concluindo uma pesquisa de mestrado sobre Carlos Drummond de Andrade na Universidade de São Paulo. Como free-lancer, teve reportagens publicadas por Caros Amigos, Revista Brasileiros, Diário do Grande ABC entre outros.


 

 


Taciana Oliveira – Editora das revistas Laudelinas e Mirada e do Selo Editorial Mirada. Cineasta e comunicóloga. I'm dancing barefoot heading for a spin. Some strange music draws me in…