É preciso, é preciso | Luiz Henrique Gurgel

  

por Luiz Henrique Gurgel__


Foto: Carlos Martinez


L subia devagar pela estreita e vazia estrada rural, carro em marcha lenta para contemplar a serra, ver o verde, ouvir passarinho e reparar no que não percebera tantas vezes passando por ali com pressa e vontade de chegar em seu pequeno Paraíso. Desta vez ia lento como se fizesse o seu caminho de Hebron.

 

Foi assim que numa curva viu a moto tombada na margem oposta sobre uma touceira de capim alto. Curva mais ou menos fechada e - de duas, uma - ou o motoqueiro deixou a moto mal escorada enquanto foi fazer algo urgente no mato, ou alguém caiu da moto. Mas onde estava?

 

Parou o carro bons metros antes da curva para evitar acidente, pisca alerta ligado. Perto da moto foi que reparou embaixo dela uma perna e também o que parecia ser uma muleta. Estatelado e torto no fofo capim, olhos arregalados e assombrados, o motoqueiro o encarou fixamente, capacete enviesado escapando da cabeça.

 

L sentiu cheiro de gasolina, levantou a moto sem placa e com lama seca grudada nas partes. Falou com o motoqueiro, que demorou um pouco para responder, engruvinhando palavra, Ocê foi o primeiro a parar pra me ajudar. O pastor passou e fingiu que não viu; depois o Dito Fazendeiro só gritou da caminhonete "levanta, bêudo!"

 

L lembrou do Bom Samaritano, sentiu que agora descia para Jericó, não mais subia para Hebron, riu por dentro. S, o motoqueiro, banguela, barba de Jeca Tatu e uma prótese no lugar da perna esquerda. E aquilo que parecia uma muleta debaixo da moto era uma muleta. S falava devagar, sem piscar, os olhos continuavam fixos, repetindo, Só ocê parou pra ajudar, amigo não é quem a gente conhece, amigo é assim que nem ocê. A cachaça exalava mais que a gasolina derramada. L disse que cachaça e motocicleta não combinavam, ainda mais ali na estrada da serra. S riu arreganhando a gengiva superior com um e outro dente; na parte debaixo dentição aparentemente completa.

 

S repetia as ideias sobre a amizade, agradecia a L, ria do tombo, Mexeram nessa curva, ela não era assim. Convidou L para mais uma cachaça na venda do Zé Arcanjo, logo ali na frente. L riu de novo e recomendou que não tomasse mais cachaça até chegar em casa. S também riu, É preciso, é preciso.

 

No meio da conversa apareceu um carro de polícia que subia a estrada e L ficou preocupado, o cheiro de cachaça de S. O senhor não pode parar o carro ali, disse o policial. L explicou que o motoqueiro escorregara na curva e tinha parado para ajudar. Ah, tá, respondeu. Mas quando viu S apoiado na muleta, Olha! Ainda tem muleta! e também riu, S riu junto, de um jeito que só bêbados fazem. O policial preferiu ir embora.

S insistiu, Vamos tomar uma lá no Zé Arcanjo. L agradeceu de novo, Desse jeito você não chega na próxima curva, S gargalhou, Mas é preciso, é preciso.

 

Com o capacete na testa, deu a muleta para L segurar, apoiou no freio da moto a perna que estava com ele desde o nascimento - a direita - e com a mão esquerda puxou a outra perna, a dura, permanentemente imóvel, passando por cima do banco até a encaixar no estribo do outro lado. E a muleta? Onde vai? indagou L. S apenas sorriu e piscou, encaixando a muleta no guidão. Ainda pediu que L desse um empurrão para sair rodando até o começo da ladeira. É sempre no tranco, disse S, já seguindo cambaio em cima da moto, enquanto levantava a mão direita, de costas, como um aceno de despedida. Ainda gritou engrolado, Tem sempre que parar no Zé Arcanjo, é preciso, é preciso.

 

No meio da estrada, L acompanhou S desaparecer ziguezagueando na primeira curva. Instante largo de silêncio até que também gritou, meio afoito, Sim, a gente precisa da cachaça, de muita cachaça!

 

 

 

Luiz Henrique Gurgel - É paulista de Santo André, professor que se debandou para o jornalismo há mais de 20 anos. Trabalhou com projetos editoriais do Estúdio Elifas Andreato, em São Paulo, onde fez parte da equipe de criação e foi um dos editores da revista Almanaque Brasil, extinta publicação de bordo da TAM Linhas Aéreas; ainda com Elifas foi pesquisador e redator da série em fascículos “História do Samba”, lançada pela editora Globo. Também participou da equipe de programação da Galeria Olido, centro cultural da Prefeitura de S. Paulo, logo após sua inauguração em 2004, responsável pelas atividades com literatura. Como free-lancer, teve reportagens publicadas por Caros Amigos, Revista Brasileiros, Diário do Grande ABC entre outros. Atualmente trabalha com projetos educacionais e está concluindo uma pesquisa de mestrado sobre Carlos Drummond de Andrade na Universidade de São Paulo. É autor do livro de contos “amores malfadados” (Editora Primata, 2021)