por Luiz Henrique Gurgel__
L subia devagar pela estreita e vazia
estrada rural, carro em marcha lenta para contemplar a serra, ver o verde,
ouvir passarinho e reparar no que não percebera tantas vezes passando por ali
com pressa e vontade de chegar em seu pequeno Paraíso. Desta vez ia lento como
se fizesse o seu caminho de Hebron.
Foi assim que numa curva viu a moto
tombada na margem oposta sobre uma touceira de capim alto. Curva mais ou menos
fechada e - de duas, uma - ou o motoqueiro deixou a moto mal escorada enquanto
foi fazer algo urgente no mato, ou alguém caiu da moto. Mas onde estava?
Parou o carro bons metros antes da
curva para evitar acidente, pisca alerta ligado. Perto da moto foi que reparou
embaixo dela uma perna e também o que parecia ser uma muleta. Estatelado e
torto no fofo capim, olhos arregalados e assombrados, o motoqueiro o encarou
fixamente, capacete enviesado escapando da cabeça.
L sentiu cheiro de gasolina, levantou
a moto sem placa e com lama seca grudada nas partes. Falou com o motoqueiro,
que demorou um pouco para responder, engruvinhando palavra, Ocê foi o primeiro
a parar pra me ajudar. O pastor passou e fingiu que não viu; depois o Dito
Fazendeiro só gritou da caminhonete "levanta, bêudo!"
L lembrou do Bom Samaritano, sentiu
que agora descia para Jericó, não mais subia para Hebron, riu por dentro. S, o
motoqueiro, banguela, barba de Jeca Tatu e uma prótese no lugar da perna
esquerda. E aquilo que parecia uma muleta debaixo da moto era uma muleta. S
falava devagar, sem piscar, os olhos continuavam fixos, repetindo, Só ocê parou
pra ajudar, amigo não é quem a gente conhece, amigo é assim que nem ocê. A
cachaça exalava mais que a gasolina derramada. L disse que cachaça e
motocicleta não combinavam, ainda mais ali na estrada da serra. S riu
arreganhando a gengiva superior com um e outro dente; na parte debaixo dentição
aparentemente completa.
S repetia as ideias sobre a amizade,
agradecia a L, ria do tombo, Mexeram nessa curva, ela não era assim. Convidou L
para mais uma cachaça na venda do Zé Arcanjo, logo ali na frente. L riu de novo
e recomendou que não tomasse mais cachaça até chegar em casa. S também riu, É
preciso, é preciso.
No meio da conversa apareceu um carro
de polícia que subia a estrada e L ficou preocupado, o cheiro de cachaça de S.
O senhor não pode parar o carro ali, disse o policial. L explicou que o
motoqueiro escorregara na curva e tinha parado para ajudar. Ah, tá, respondeu.
Mas quando viu S apoiado na muleta, Olha! Ainda tem muleta! e também riu, S riu
junto, de um jeito que só bêbados fazem. O policial preferiu ir embora.
S insistiu, Vamos tomar uma lá no Zé
Arcanjo. L agradeceu de novo, Desse jeito você não chega na próxima curva, S
gargalhou, Mas é preciso, é preciso.
Com o capacete na testa, deu a muleta
para L segurar, apoiou no freio da moto a perna que estava com ele desde o
nascimento - a direita - e com a mão esquerda puxou a outra perna, a dura,
permanentemente imóvel, passando por cima do banco até a encaixar no estribo do
outro lado. E a muleta? Onde vai? indagou L. S apenas sorriu e piscou,
encaixando a muleta no guidão. Ainda pediu que L desse um empurrão para sair
rodando até o começo da ladeira. É sempre no tranco, disse S, já seguindo
cambaio em cima da moto, enquanto levantava a mão direita, de costas, como um
aceno de despedida. Ainda gritou engrolado, Tem sempre que parar no Zé Arcanjo,
é preciso, é preciso.
No meio da estrada, L acompanhou S
desaparecer ziguezagueando na primeira curva. Instante largo de silêncio até que
também gritou, meio afoito, Sim, a gente precisa da cachaça, de muita cachaça!