por Iaranda Barbosa__
Capitão abriu os olhos pela manhã e resmungou. Finalmente a Quarta-feira de Cinzas chegou. Finalmente o inferno desse Carnaval vai terminar. Povo desocupado. Bando de putas, viados, drogados, favelados e marginais. Mataria todos se pudesse e higienizaria a cidade, acabaria com essa escória. Todo ano a mesma coisa. Serviço diário, calor, sujeira, som alto, multidão e aquele fedor. Ahhhrrg. Era o pior de tudo. A catinga de mijo e suor em todos os pontos da cidade. Mas pelo menos agora acabou. Só daqui a 300 dias, quando o ciclo da imundície e da depravação com as malditas prévias vai dar início a um novo pesadelo.
Olhou para o par de coturnos ao lado da cama e sentiu os pés
formigarem junto com algo pegajoso entre os dedos. Sudorese esquisita, deve ser
o cansaço, murmurou. Afinal, há meses não havia parado um único fim de semana.
Trabalhou duro em todos os serviços, principalmente no último sábado. O pior de
todos os dias. Maldito bloco. Mais de um milhão de pessoas naquelas vias
estreitas, naquele sol escaldante, praguejou. Tentou de todas as maneiras
trocar a escala, mas foi impossível. O contingente está no limite. Batalhão e
tropa completos na rua, ouviu de seu superior. Mas passou, estava livre, iria
tomar um banho e aproveitar o dia para fazer nada. Remoía esses planos quando
sua esposa entrou no quarto dizendo:
– Acabei de ver no jornal que quatro rapazes foram obrigados
pela polícia a pular no rio durante o desfile do bloco, no sábado. Três
sobreviveram e um continua desaparecido. Que tristeza. A maré tava alta. Estão
procurando o corpo entre os galhos do manguezal. Também pode tá enterrado na
lama. Você viu algo?
– Não. Mas pra que se preocupar? É menos um pra fazer arrastão,
cheirar loló e dançar feito cachorro no cio.
– Era um adolescente... Os outros estão internados. Só hoje
conseguiram falar por causa do trauma e da poluição que infeccionou a pele e os
rins.
– Tsc. Besteira. O café já tá pronto?
A esposa de Capitão olhou em silêncio para ele e depois para o
par de coturnos ao lado da cama. Movimentou a cabeça afirmativamente e saiu do
quarto.
À mesa, percebendo que o marido estava com a testa molhada,
perguntou quase sabendo a resposta:
– Você tá com calor?
– Quando é que aqui não faz calor?
Devolveu a pergunta levantando-se e retornando em direção ao quarto.
Ao percorrer com o olhar o corpo do marido, notou a camisa
encharcada nas costas e manchas arredondadas e escuras nas áreas das axilas.
Estranho, logo ele, tão fissurado em limpeza. Abriu a boca para fazer o
comentário, mas optou apenas por vê-lo afastar-se e deixar atrás de si marcas
pegajosas no chão e um forte cheiro adstringente.
Capitão deitou-se. O formigamento dos pés subia em direção às
pernas, que lhe pareceram inchadas, como acometidas pela elefantíase. Sentiu
comichões por todo o corpo e uma protuberância na garganta, que lhe impedia de
respirar. O peito parecia que iria explodir, os olhos queriam saltar das
órbitas, a cabeça latejava, o nariz ardia, a pele do rosto inflava, pequenas
lacerações já começavam a aparecer, sentia o maxilar extremamente aberto e, na
iminência de gritar, viu a mulher parada na porta do quarto, de braços
cruzados. Mal ouviu a sua voz:
– Vai dormir o dia todo? O almoço tá pronto.
Levantou-se com dificuldade. A boca amargando, os dentes
doloridos, a língua espessa.
Ao chegar à cozinha, a mulher reparou os cabelos dele
estranhamente pegados ao couro cabeludo e muito suor escorrendo pelas laterais
do rosto. Teve a sensação de que ele estava com a pele escurecida e com
olheiras profundas, resultantes de noites em claro. Estaria doente?
– Você tá bem?
Mas Capitão permaneceu calado. Sentou-se e passou todo o almoço
olhando fixamente para o prato. O aroma da comida não o apetecia, o estômago
parecia cheio, o alimento aparentava ser pastoso e de sabor repugnante. Até a
disposição para segurar os talheres era ausente, pois sentia seus braços
cansados, como se tivessem nadado horas contra uma correnteza fraca, mas
contínua.
Levantou-se e saiu tropeçando e deixando marcas úmidas de suas
mãos nas paredes do corredor.
No fim da tarde, a mulher sentiu um cheiro de maresia. Percorreu
a casa e parou diante do quarto. Olhou para baixo e viu que saía pela fresta da
porta um líquido escuro e espesso. Entrou e encontrou minúsculos siris que
fervilhavam em uma enorme poça de lama bem no meio do cômodo. Fitou
demoradamente o par de coturnos ao lado da cama. Saiu e em seguida voltou com
balde, esfregão e desinfetante.
Iaranda Barbosa, formada em Letras Português-Espanhol, pela UFPE, possui mestrado e doutorado em Teoria da Literatura pela mesma instituição. Salomé (Selo Mirada), novela histórica é sua primeira obra ficcional longa. A autora possui contos em antologias e revistas de arte, assim como diversos artigos científicos publicados em periódicos especializados em crítica literária.