O Esqueleto | Carneiro Vilela, quadrinizado por Roberta Cirne

 por Iaranda Barbosa__




Resenharia: O Esqueleto: chronica phantastica de Olinda, de Carneiro Vilela, quadrinizado por Roberta Cirne.

 

A obra se passa em Olinda e conta a história de Felipe, um cearense que vem para Pernambuco estudar Direito. Ele deixa no Ceará promessas de amor relacionadas à prima, Lívia. Contudo, o rapaz se ‘corrompe”, podemos assim dizer, e se envolve em orgias, bebedeiras, furtos, contravenções e todos os tipos de canalhices junto com os colegas de faculdade.


O terror, os conflitos, as críticas sociais e o desfecho sob os moldes gótico-românticos são registrados através dos traços ‘phantasticamente’ detalhista de Roberta Cirne. A quadrinista dá um sopro de vida aos seres de papel inventados por Vilela e consegue traduzir para as ilustrações as expressões faciais e o gestual dos personagens. Ademais, os desenhos, todos feitos a mão, transmitem – a depender de cada cena – movimento, leveza, dureza, angústia, sofrimento:



Vale a pena ressaltar que a escolha por fazer os quadrinhos em preto e branco fomentou uma carga dramática ainda maior à história. Outro ponto a se destacar é o cuidado com os detalhes. O piso, as paredes, o vestuário, os objetos dos ambientes e até as imperfeições do rosto de alguns personagens são mantidos todas as vezes que eles aparecem – haja vista um dos amigos do protagonista ter a pele coberta por acnes e essa característica é perceptível em cada quadrinho onde ele está retratado. As bordas dos quadrinhos apresentam decorações diferentes umas das outras. Assim, ora flores ou figuras geométricas as compõem ora são finalizadas com a extensão do cenário. Ou seja, as páginas finalizam com o tecido de alguma roupa, com árvores, as águas do rio, o céu, as pedras do calçamento:





Em outros momentos, a composição de algumas imagens está pautada na perspectiva e na ilusão de ótica:




Poderíamos dizer, para usar um termo mais literário, que a imagem acima nos leva a um mise en abyme quando a examinamos com mais atenção.


Logo, ao atualizar a chronica phantástica de Carneiro Vilela, realizando uma viagem de 150 anos (1872-2022), Roberta Cirne nos presenteia com um trabalho artístico carregado de beleza, dedicação e muita pesquisa – haja vista as referências ao istmo, que liga as cidades de Olinda e Recife, e à Cruz do Patrão, ponto central de alguns episódios da narrativa. Tais caracteres são perceptíveis nas ilustrações e nas suas associações com as falas dos personagens.


As assombrações de Pernambuco ganham novos ânimos, nossa cultura se enriquece e a memória afetiva e cultural cada vez mais se solidifica. Os traços da quadrinista vai mais além do que contar histórias antigas contadas em roupagem nova. Eles perpetuam algo intrínseco e vital para nós: nossa identidade.



**Carneiro Vilela (Recife, 1846-1913), foi juiz, bibliotecário, jornalista, poeta, comediógrafo, pintor de quadros e criador de cenários teatrais, além de escritor. Escreveu cerca de 14 romances, dos quais o mais conhecido é A emparedada da Rua Nova, publicado em capítulos semanais no Jornal Pequeno, do Recife, entre agosto de 1909 e janeiro de 1912, que causou grande comoção na sociedade da época, levando muita gente a acreditar - como ainda hoje -, que a história reproduzia um drama real. Escreveu também artigos, contos e crônicas. Versátil, chegava a escrever três folhetins por dia, segundo seu biógrafo, Luís Delgado. Carneiro Vilela foi fundador e primeiro presidente da Academia Pernambucana de Letras. Fonte: Cepe



 

Roberta Cirne é quadrinista, trabalha com ilustração desde 1992. Sua estreia nos quadrinhos se deu em 2006, com a obra Passos Perdidos, História Desenhada: A Presença Judaica em Pernambuco no Século XX, ilustrada por Roberta e Danielle Jaimes a partir de roteiro de Amaro Braga, que por sua vez adaptava o livro Passos Perdidos, História Recuperada: A Presença Judaica em Pernambuco, de Tânia Kaufman.  Publicou em parceria com Danielle e Amaro as HQs Heróis da Restauração Pernambucana (2008) e AfroHQ – História e cultura afro-brasileira e africana em quadrinhos (2010). Em 2017, criou o site Sombras do Recife, no qual passou a publicar HQs de terror inspiradas no folclore e tradição oral de Recife, sua cidade natal, trazendo personagens míticos como o Boca de Ouro, o Papa-figo e a Emparedada da Rua Nova. Um primeiro volume impresso da série, com duas histórias, foi lançado no ano seguinte financiado por crowdfunding através do site Catarse




Iaranda Barbosa, formada em Letras Português-Espanhol, pela UFPE, possui mestrado e doutorado em Teoria da Literatura pela mesma instituição. Salomé (Selo Mirada), novela histórica é sua primeira obra ficcional longa. A autora possui contos em antologias e revistas de arte, assim como diversos artigos científicos publicados em periódicos especializados em crítica literária.