Cinco poemas de Rafael de Oliveira Fernandes

 por Rafael de Oliveira Fernandes__


Foto: Xiaokang Zhang




Uma rua chamada Ceará


No meu bairro havia uma rua
com o nome do seu Estado.
E às vezes imaginava que
ao atravessá-la encontraria
o estado do Ceará.
Era como se do outro lado da rua
ao invés dos prédios eu
pudesse ver o mar.
Às vezes, no entanto eu
imaginava que era o contrário.
Que seu Estado era
como um carro que atravessava
a rua para vir me visitar.
Que ele se movimentava
sobre as rodas como se
estivesse sobre as ondas.
E quando elas chegavam na praia,
no início da rua, era como
se em frente à minha casa
ele decidisse
estacionar

 

 


Guardar lembranças

Hoje ao caminhar
com minha mãe
à beira-mar parecíamos

refazer os mesmos passos
de trinta anos atrás
e reviver as mesmas lembranças.

Vimos o apartamento
em que costumávamos nos
hospedar
o orquidário

onde adorávamos passear

Foi como se nossas pegadas 
não houvessem sido
apagadas pelo mar
mas esperassem
no fundo do oceano

todos esses anos

para serem devolvidas

à areia

por onde iríamos passar

dentro de pequenas
conchas

 

 

O tempo

Nós sempre soubemos que a areia
era o tempo se acumulando.
E quando íamos à praia
o tempo parecia mesmo ali parado.
Alguns voltavam no tempo, 
construíam castelos de areia
e fingiam que viajavam a séculos passados.
As meninas faziam bolos, 
depois os cortavam e ofereciam 
um pedaço de tempo às amigas 
como se comemorassem um aniversário.
E houve o ano em que atiraram
uma bola de areia em meu peito,
era tão pesada que parecia

haver uns cem anos naquela arma.
Fiquei coberto de rugas até mergulhar

no mar azul, como o céu,
e quando voltei estava jovem novamente, 
como se houvesse
ressuscitado

 

 


Alcançar a eternidade


 

Eu acabara de tirar
a fantasia do super-homem.
Por isso, quando fomos assaltados
em frente ao portão
já não poderia parar as balas com as mãos,
imobilizar com uma teia o ladrão
ou amortecer a queda
como nas vezes em que imaginava voar 
e aterrissava no velho colchão
que ficava estendido no chão do quarto.
Eu andava o dia todo sobre ele,
como se sonhasse acordado,
usava como apoio para escalar a parede 
como o Homem-Aranhae alcançar os livros   
da estante lá no alto.
E depois, enquanto escrevia,
parecia que poderia vencer a morte
todas as vezes,
nas histórias em que viveria para sempre
como se a tela do computador
fosse o escudo do capitão américa
que me protegia de todos
os disparos

 

 

Viagem dentro de um quadro

 


Ela olhava pra fora
do carro como se houvesse uma pintura

que ia se fazendo aos poucos.
Então passava os dedos no vidro

como se fosse ela

que pintasse a paisagem.
Primeiro pintava as árvores, contornando-as,

ou as rosas, cujas pétalas

pareciam sair da tintura vermelha das unhas,

e um lago aparecia conforme a respiração

embaçava o vidro e ela murmurava o barulho das águas.
Depois, era a paisagem que entrava pelo vidro aberto,

na luz que coloria a pele,
no vento que trazia os cheiros das flores
e desenhava seus cabelos

como se fosse ela que estivesse dentro do quadro.
Ela parecia dormir encostada no vidro,

sonhar com a paisagem

que aos poucos se formava.

Por isso, ao atravessar um longo túnel,

a lua aparecia como um olho brilhante que investigava tudo.

E quando uma montanha na forma de menina

enrolava toda a pintura,

parecia ser ela se preparando para dormir

do outro
lado



 


Rafael de Oliveira Fernandes, nascido em São Paulo, capital, em 1981, formado em Direito pela USP, autor dos livros de poesia “Menino no telhado” e “Cadernos de Espiral” (editora 7letras), e do romance “Vista parcial do Tejo” (editora Patuá)