Meio cuscuz | Anthony Almeida

 Anthony Almeida__


 


Quebrou-se a cuscuzeira. Dentro da panela, que tem formato de troféu, onde preparo um alimento de ouro, há um separador. Na parte de baixo vai a água, na de cima, os flocos de milho. Eles são cozidos pelo vapor da água, que sobe pelos furinhos do separador. Pois foi esse danado que se quebrou.


Há uma haste que serve para puxar o separador. É lindo quando se consegue puxar o cuscuz inteirinho pela haste. É lindo de ver o monumento de milho sobre a mesa, com manteiga por cima, ali, bonito e gostoso para a gente se fartar. É triste ter a haste quebrada, separada do separador...


Uns dirão que é drama. Outros, que dominam a arte da cuscuzeria, falarão que ainda dá para fazer cuscuz assim mesmo, deixa de pantinho, menino. Outros mais, poetas de dor e de paranomásia, versejarão:

 

Puxa, que dor!

Quebrou-se o puxador.

O puxador do separador

que separa a dor...

que puxa a dor...

Não, não.

Puxava, separava.

Sem o puxador do separador

fica a dor,

finca-se a dor,

fica o ardor.

Por que, Senhor? Por quê?

 

Eu, pernambucano que sou, fiquei muito alegre quando encontrei o milho flocado à venda nos mercados do oeste paulista. Soube que poderia fazer cuscuz por aqui. Foi um dos primeiros momentos a me mostrar que o estado de São Paulo também poderia ser minha casa.


Arrumei umas moedas, comprei o flocão e o deixei em cima da mesa, no aguardo da cuscuzeira. Perambulei pelas ruas e pelas lojas do comércio e nada de cuscuzeira. Ficamos eu e o pacote de cuscuz na espera... Foi um dos primeiros momentos a me mostrar que o Estado de São Paulo talvez não pudesse ser minha casa.


Numa viagem para Pernambuco, depois de 915 dias vivendo no chão paulista, comprei a panela, trouxe comigo. Quando chegamos, o pacote de cuscuz ainda esperava. Faltavam quinze dias para o fim da validade. Em menos de cinco, a farinha de milho flocada virou cuscuz gostoso.


Agora, eu olho para a minha cuscuzeira quebrada e sei que ainda conseguirei fazer um cuscuzinho. Dá pra comer, vai. Mas é que falta alguma coisa. Não é um cuscuz completo, é meio cuscuz. Eu como desse meio cuscuz. Como e desejo um Pernambuco inteiro.

 

Presidente Venceslau. Maio, 2022.

 





Anthony Almeida é professor e cronista. Nasceu em Caruaru/PE e reside em Presidente Venceslau/SP, onde leciona. Pesquisa a Geografia Literária, escreve e estuda a crônica brasileira. Atualmente é cronista do Jornal Tribuna Livre e da Revista Mirada. É doutorando em Geografia, pela UFPE, editor adjunto da RUBEM – Revista da Crônica, e colecionador de cartões-postais. Contato: anthonypaalmeida@gmail.com