Três vozes: falar, amar, cantar | Daniel Glaydson

 

por Daniel Glaydson Ribeiro__

 

Fotografia:Teymur Mirzazade 


Em nossa voz, três potências, no mínimo, habitam: falar, amar e cantar. São modulações sensíveis, mas radicais, que alcançam espaços de ressonância muito próprios, ancoradas em sabedorias ancestrais, primitivas. Mas, neste mundo, ou estamos atados ao mastro do navio, querendo a morte, ou estamos remando ensandecidos, golpeados pelo relógio, com os ouvidos tapados à beleza. Por que não colocar em prática, e repensar a práxis, de cada uma dessas potências?


Na potência do falar se insere o discurso cotidiano, a linguagem comum. Mas quão diferente pode ser essa linguagem do cotidiano, a depender do que a comunidade de falantes faz com ela! O que temos feito com esta construção cotidiana do diálogo? É certo que podemos ficar tão próximos do rugido, do rosnar ou do grito (e como!) quanto próximos do atender, do cuidar, do abraçar-com-a-fala. Depende da casa, depende da escola, do povo, dos meios de comunicação de massa, da política, da vida e, no íntimo interior meu, depende de cada Um. A nossa liberdade reside no fato de escolher o que falar, como falar e, mais ainda, como escutar. A minha escuta está intrínseca e umidamente relacionada ao que eu ando-falando.


Já no amar, a voz embarga.

A voz sente mais que fala;

ela chora

intui

em ti.

No amar não há falação,

mas relação.


Relação com o outro, e consigo mesmo, com Deus, Deusa, as forças divinas em que creiamos. Crer talvez seja outro nome para amar.


Crer no outro, nas ações e nas potências d’ile; con-fiar. Tecer a si mesmo no outro-universo, sem que a noite desfaça o tecido ao longo do dia.


Melhor do que tratar esta potencialidade como “discurso de amar”, vale mais dizer corrente de amar, ou mesmo correnteza de amar.


[       Shi, este murmúrio aquoso que significa poesia

em chinês, traduzia-se “linguagem do coração”     ]


            Portanto, se das três potências ditas de início, o falar é aquela que se aproxima do que chamamos de prosa, o amar se aproxima da poesia. O discurso/correnteza de amar nos encaminha surpreendentemente ao cantar, assim como a poesia nos encaminha naturalmente à música.


[    A poesia nos torna seres abertos à surpresa.   ]


            Poderíamos falar num “discurso de cantar”, num “discurso cantante”, num “discurso em canto”? Discurso-encanto. Corrente em canto, como Íon e musas e ímãs. Cantar é arrepiante. Sua potência é tamanha que a sociedade quer contê-la, quer separá-la em vozes boas – the voice, não por acaso, em inglês –, & vozes ruins, tachando que haja algo de errado, de menor, de recriminável nas outras vozes, “desafinadas, despreparadas, imaturas”. Cantar no banheiro é o que resta, como se precisássemos fechar portas ao canto. O mundo seria mais que um mundo se não precisássemos fechar portas. Lugar onde cantar e dançar no meio da rua, ou melhor, das veredas, fosse apenas sinal de felicidade irrecriminável, alegria,


júbilo.

 

A respiração depois do canto e de sua ressonância abre caminhos ao silêncio, emoldurante silêncio, imarcescível.


Este silêncio que talvez seja uma quarta potência


da voz

 

 




Daniel Glaydson Ribeiro nasceu em Picos (1985). Pai de Anita, Tarsila e Bento. Professor do Instituto Federal do Piauí. Com o grupo Ausgang de Teatro, organizou o livro Almanach Muda (2016) e levou o Samba de Brecht para a Universidad de las Artes, em Havana, Cuba. Dentre as publicações recentes, estão: a plaquete “Marcescível” pela Mirada (2020); o poema “Põlinud-iná” na revista Desenredos (2020); e traduções de Paul Valéry na revista Em Tese (UFMG), com Fábio Roberto Lucas. "Pulsão de língua" (Mirada, 2021) é seu primeiro livro solo. Coordena o projeto de extensão “Linguagem e poesia #dendicasa”, cuja produção virtual pode ser encontrada em youtube.com/LinguagemePoesiaDendiCasa