Expresso 2022 – Carro 1 | Anthony Almeida

  Anthony Almeida__

 


Começou a circular o expresso dois-zero-dois-dois que parte direto com meu regresso e apois! Começou a circular o expresso dois-zero-dois-dois: litoral do Brasil. E parte direto, de rumo certo, pra depois do ano que auriu.

Vi passar o dois-zero-um-oito, o dois-zero-um-nove, o dois-zero-dois-zero, o dois-zero-dois-um... Foram-se. Enquanto via o último dobrando a esquina, decidi que não perderia o próximo. Me orientei, rapaz. Me orientei e decidi regressar; mirei o Cruzeiro do Sul; constatei que a aranha vive da teia tecida; considerei a possibilidade de um curso de pós-graduação; me orientei por céu e inseto, decidi regressar.

Vamos lá. Mas, antes de ir, preciso me alimentar, levar comigo a sustança que me manterá vivo e sensível às vivências e visagens da viagem. Começo por onde, hã?

 

A LITERATURA (OU A RETIRADA)

 

Começo pela literatura, sim!

Chegou o momento de reler Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Nele, o povo se retira. Agora, eu retorno. Uma excelente leitura pré-viagem! Será um reencontro oportuno. 

Adolescente, li o romance como atividade escolar. Fui lendo e achando tudo meio seco demais. Ingênuo, eu não sabia que esta era mesmo a intenção de Graciliano. Só a cachorra Baleia me fazia sorrir. No capítulo dela, depois da leitura, sacudi o livro longe. Lágrimas. Me abusei da obra, me arretei com Graciliano Ramos.

Não lembro se terminei a leitura, gosto de pensar que sim. Faria muito sentido pensar que não. Lembro do livro voando pelo quarto, se machucando na parede, e gargalho da situação. Xinguelogio Graciliano e sua astúcia. Bem, bem. Antes de partir, que me acompanhem Fabiano, Sinha Vitória, o menino mais velho, o menino mais novo, a cachorrinha Baleia.

 

A MÚSICA (OU A ESTRADA PELA ITAPEMIRIM)

 

Mais o quê, hã? Música!

A música me será outra boa companheira. Tem sido, na verdade. Vem, inclusive, muito antes da literatura. Vai me acompanhar, pois sim. Tomarei meu expresso 2022, de fones de ouvido, ao som do mestre Gilberto Gil, pois acolá fica a tal “terra-mãe concebida / de vento, de fogo, de água e sal”.

Tem também o Cordel do Fogo Encantado, que canta com meu sotaque e tem boas letras sobre entrar na estrada. "Meu povo não vá simbora / pela Itapemirim, / pois mesmo perto do fim / nosso Sertão tem melhora". Voltarei pelo ônibus da Itapemirim, se ainda circularem. Depois de tantos anos de funcionamento, a peste da viação se envolveu numa maracutaia, está quase falida, justo quando eu precisava dela para ir mimbora... Em São Paulo, descobrirei se ela ainda faz a rota para Caruaru.

"Os retirantes já cruzaram meio mundo / eu fico aqui esperando outro batuque", canta mais o Cordel. Por décadas os retirantes nordestinos migraram para o Sudeste, muitos pelos ônibus da Itapemirim. Quando vim ao Sudeste, vim de avião. Minha migração, espontânea, foi mais uma migração de cérebro do que uma retirada.

Ainda assim, isso não me impediu de me sentir retirante em vários momentos, o que foi bom, me mostrou como é se sentir pertencente a um lugar. Também foi dolorido... Numa festa de ano novo, eu sem dinheiro para voar para Pernambuco, decidi por uma celebração em que quase todos me eram desconhecidos. Fui porque uma das conhecidas insistiu, não queria me ver solitário na data simbólica. Na festa, fui chamado de retirante. O xenófobo ainda acrescentou que eu vim para São Paulo para beber a água dos paulistas...

Doeu saber que todos os que cruzaram meio mundo, que por décadas andaram "para o sul, metidos naquele sonho” e desejaram “uma cidade grande, cheia de pessoas fortes", como escreveu Graciliano, ouviram e sentiram desse tipo de desprezo. Doeu.

Reconfortei meu íntimo ouvindo os batuques e os sotaques da música do Cordel do Fogo Encantado. Hoje, ouço os batuques e sei que "o tempo faz estradas / para se chegar ao fim / nossa vida é feita assim / na estrada / ÊÊÊ ÔÔÔ. Grito o ÊÊÊ ÔÔÔ. Grito no anseio de pegar a estrada. Ela virá já, já.

 

Presidente Venceslau. Julho, 2022.

 




Anthony Almeida
é professor, cronista e cartofilista. Nasceu em Caruaru/PE e reside em Presidente Venceslau/SP. Pesquisa a Geografia Literária, escreve e estuda a crônica brasileira. É cronista do Jornal Tribuna Livre, da Revista Mirada, doutorando em Geografia, pela UFPE, e editor adjunto da RUBEM – Revista da Crônica. Contato: anthonypaalmeida@gmail.com