Miragem, de Socorro Nunes

 

por Adriane Garcia__

 




A capa traz a exuberância da vegetação e das flores da caatinga. Miragem, da poeta Socorro Nunes, fala dessa exuberância e da de um outro monumento: Os sertões, de Euclides da Cunha. É com poesia que o massacre de Canudos é recontado e é com ela que a terra, o homem e a luta sertanejos são traduzidos em versos de grande potência imagética.

 

Os sertões, livro mais próximo do jornalismo literário, mas que nos toma como um romance, está nas entrelinhas de Miragem. No entanto, não é apenas essa experiência lida do sertão que move Socorro Nunes; é sua própria experiência sertaneja, de poeta nascida em Araripe, no Ceará, com passagem por Pernambuco e radicada em Minas Gerais.

 

É de se notar que o passado só nos interessa frente às questões do presente. Canudos nos interessa especialmente na atualidade de um país que não resolve suas demandas sociais, que trata com injustiça e violência extrema os desvalidos e vulneráveis, usando o braço armado do Estado – vide a violência policial contra as comunidades negras e periféricas – contra sua própria população. Canudos, em Os sertões, ganha aspecto de denúncia não só para a época de sua publicação (1902), como para os dias de hoje. Miragem nos traz “fotografias poéticas” daquele e deste século, pois Canudos é a esperança esfarrapada mostrando sua força descomunal.

 

Dividido também em três partes, “Sertão só”, “Titã desassombrado” e “Canudos não se rendeu”, Miragem nos situa em um ambiente inóspito, difícil, longilíneo. Com versos certeiros, econômicos, primando pelo belo e pelo comunicativo, coloca-nos na posição de pequenez diante do vasto. A condição humana vai-se desenhando com um vocabulário delicioso das paragens sertanejas, tudo podendo ser visto e sentido entre palavras como Araripe, Cariri, caatinga, croás, cunanãs, cajueiros, umbuzeiros, cactos, quixabeiras, cipoais, gravatás e macambiras. Os não sertanejos, forasteiros, “seres de outras latitudes”, são convidados a olhar para aquele bioma e perceber que ali há uma força, um mistério, pois os que conhecem o sertão de fora não podem compreendê-lo. 

 

Na primeira parte, “Sertão só”, uma dedicação à paisagem nos conta dos espécimes do sertão, vegetais que se cruzam com os gestos humanos. Os versos nos encaminham para a percepção de que o espaço desértico é espaço de efemeridade, visto que o sertão é feito de mudança e espera, o que parece desolação é só fase, há um ciclo: “árvores outro dia/despidas/aparecem juncadas/de flores”. Metáforas como “vestimenta” amplificam a potência imagética dos versos que descrevem a paisagem de repente florida, apesar do sol escaldante, algoz natural de um sertão febril; a despeito do solo constantemente ferido, que nunca morre, a flor é a analogia plena para a luta pela vida. A geografia, a geologia e a botânica aparecem cúmplices e protetoras, na medida em que o conhecimento da terra foi primordial para a resistência no Arraial de Canudos. Socorro Nunes nos aponta as cercas, as touceiras, as ruínas veladas, e nos faz olhar para o céu em uma noite profunda, a fim de vermos a constelação de Órion. Se a prosa pode nos dar detalhamentos que só ela é capaz, é a poesia que nos carrega na sinestesia de ir e voltar séculos para sentir essa noite. É ela que pode abrir nossos olhos em uma manhã árida, para em meio a flocos esgarçados de nuvens, onde tudo é rústico, notar a beleza de uma flor que desabrocha às 9 horas, mesmo na febre. Comparece a chuva, a sede da fauna é saciada, a poeta nos prepara para a segunda parte. Fantasmas começam a ser iluminados. 

 

 

Na segunda parte, “Titã desassombrado”, o palco é o da batalha em si para mostrar o homem. No poema “Descalços”, Socorro Nunes expõe a pobreza e a desigualdade entre os dois lados do embate. Em “Jagunço” pinta a paisagem humana desolada: “moribundos/camuflados/de gente”. Chamada em muitos livros de história como “guerra”, trata-se de um massacre com resistência inesperada. As forças oficiais não conheciam o que a poeta tão bem nomina: o titã. O jagunço é metaforizado pela poeta como um ser mitológico, um anteu do sertão (o gigante da mitologia grega que se fortalecia em contato com a terra e se enfraquecia quando levantado no ar). Com imagens muito bonitas – e eficientes – Miragem nos leva a um dos embates vitoriosos para os rebeldes: “a noite colheu o inimigo”. Noutras vezes, o jagunço é um Hércules – desgracioso, antítese de herói, faminto. Sob as badaladas do sino da igreja de Antônio Conselheiro, o povo se reúne e resiste até onde pode. A sentença – sem julgamento – que se encaminha para cumprir-se é a da morte dos rebeldes (assassinato). Porém, antes que a chuva possa lavar o sangue que manchará para sempre o solo do vale do Vaza-Barris, os soldados serão cozidos a bala, como ironicamente nos informa o poema Jantar. Morre o Conselheiro e o cerco maior é o da fome.

 

Na terceira parte de Miragem,Canudos não se rendeu”, a poeta trata da resistência em si que, desafiando a lógica, mostra o ser humano como força imprevisível, para além das táticas e estratégias bélicas. É o humano a grande surpresa de Canudos. Os moribundos aguardam ser enterrados no solo sacrossanto. O deserto de Canudos, para sempre gestante (de futuro) se espelha nas nuvens grávidas de um novo tempo. Diante da opressão sem paradeiro, as forças ditas civilizatórias representadas por seus exércitos trazem algo de muito obtuso.

 

De tudo o que se podia ver resta a certeza da fragilidade da vida humana. O grande mistério – e paradoxo – da perenidade do sertão, entre a efemeridade dos dias, transubstancia-se na linguagem. É ela que quer ser o elo entre os vivos e os mortos. E, talvez, só ela seja.



inverno

 

a chuva torrencial

embaralha o leito

dos rios

.

solidões

alagadas

.

árvores outro dia

despidas

aparecem juncadas

de flores

a vida no sertão 

se equilibra

numa constância

irrefutável

seres de outras

latitudes

não a compreendem

 

antítese

 

tez acobreada pelo sol

vive num sertão

impérvido

separado

por destinos

rivais

 

deita-se no colo

duro da terra

não teme a suçuarana

nem a caatinga

garranchenta

.

nasceu para ser

antítese

 

resistência 3

 

vegetação raquítica

mulheres raquíticas

crianças raquíticas

homens raquíticos

.

ainda assim

canudos

não se rendeu

 

*** 

Miragem

Socorro Nunes

Poesia

ed. CEPE

2015



 

Socorro Nunes é cearense de Araripe, radicada em Minas Gerais. Contista e poeta, lançou em 2021 As flores daqui são duras (pela Penalux). Tem poemas e contos publicados em coletâneas e revistas de literatura. Professora titular da Universidade Federal de São João del-Rei, realizou o pós-doutorado em Cultura Escrita, Letramento e Alfabetização, na Inglaterra. Publicou, ainda, Miragem, Cepe, 2015, Meu Samba, Penalux, 2015 e O que ficou da fotografia (Linguaraz, 2016).

 




Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020 e Estive no fim do mundo e lembrei de você  (Editora Peirópolis).