Um plaquete e cinco poemas de Jéssica Iancoski

 

por Taciana Oliveira__







LITERATURA

 

esquecidos na mudança — deixei para trás a casa

o quarto da criança e os últimos anos da infância

 

justo no ano que me impôs o fim na primeira década

costuraram em mim a primeira linha cadavérica

 

passei a sonhar com a morte: tão serena vestido lilás

dizendo-me para deixar — também — a dor para trás

 

e pensei no meu irmão: tão pequeno e tão sozinho

ainda a contar nos dedos os seus primeiros medos

 

depois gentilmente fechei a felicidade nas pálpebras

assim: como aquele que para sempre deixa de ser

 

por fim, da minha criatura, transmutei um novo mundo

para que vivêssemos ingênuas crenças frente ao absurdo



ORGULHO

 

perguntarei a você sobre os seus motivos

para se orgulhar e você me responderá

sobre a sua inteligência riqueza e beleza

 

você olhará para mim e achará que sou menos

não sou a mais inteligente rica ou bonita

 

mas eu vi um homem rico perder a riqueza

o inteligente conhecer a demência

e a mulher mais bonita definhar a beleza

 

por isso na minha dor nada me falta e mesmo

que me tirem as pautas e me roubem a calma

me restará a gentileza a inocência e a alma

 

e quando é isso tudo aquilo que sobressalta

não é preciso de mais nada para se orgulhar



WORKAHOLIC

 

uma mão se estende em minha direção

e eu só vejo a garra o tapa a frustração

 

estou fechada em mim e carrego um silêncio

uma dor que desconheço um cansaço intenso

 

nenhuma palavra me penetra ou me pertence

estou trancada num passado que não me lembro

 

não quero ser tocada nem beijada nem cuidada

rompe em mim as marcas da infância abandonada

 

sou o risco no vidro a quina do móvel roído

a bagunça pela casa — uma tristeza ocupada



#BEAUTIFUL

 

repetidamente — voltamos ao mesmo lugar e nada importa

nas mãos dos homens o mundo não comporta — eu repito:

 

nada mais importa: nem o pé de bergamotas

nem as asas da gaivota & muito menos a nossa xota

 

tudo o que existe é a derrota: as letras mortas

de um passado que sempre desconforta

 

a beautiful horta que frutifica & exporta

os donos do Brasil querem ganhar em dólar

 

nada mais importa — no entanto eu viverei

ao ver o homem trocar o seu nome pelo de Deus

 

sua face por uma máscara, seus olhos por pés de cana

seu corpo por um náutico & seu pênis por dados cibernéticos

 

eu resistirei para ver o potencial energético parar de fazer sentido



OMITIR-SE

 

Incontestável — de dentro de suas casas

poetas deliram palavras sobre salvar a humanidade

 

— iguaizinhos a mim: covardes!

 

com as duas mãos partem os livros ao meio

peneiram filosofia moderna, movem a caneta delicadamente

como se preparassem um gâteau chiffon bem levinho

 

óleo vegetal, ovos, açúcar, farinha,

fermento em pó e a pura essência de baunilha®

— tudo da mais requintada e clássica gastronomia!

 

mas nas ruas somente o cheiro a atravessar a avenida

que aos narizes dos batalhões — não passa de bolo



*Para download: clique aqui






Jéssica Iancoski é pessoa nem-binária. Escritora, poeta, artista plástica e editora. Tem participações em antologias, jornais e revistas. Já publicou no Brasil, Argentina, Colômbia, Espanha, Galiza e em Portugal. Teve o poema “Rotina Decadente” reconhecido pela Academia Paranaense de Letras, aos 15 anos. É idealizadora do Toma Aí Um Poema (podcast, revista e editora) e responsável pela primeira publicação de pelo menos 600 autores e autoras. | Contato jeiancoski@gmail.com








Taciana Oliveira – Editora das revistas Laudelinas e Mirada e do Selo Editorial Mirada. Cineasta e comunicóloga.  Na vitrolinha não cansa de ouvir os versos de Patti Smith: I'm dancing barefoot heading for a spin. Some strange music draws me in…