A tal da sincronicidade | Susy Almeida

por Susy Almeida__


Photo by Anne Nygård on Unsplash




 

I

Tava sonhando contigo quando o celular vibrou sobre meu peito. Era uma mensagem tua dizendo que o dia tava doido doido doido, assim sem vírgula nenhuma. Tão doido doido doido que tu não sabia nem por que tinha parado pra me escrever.

Tu engoliu tuas vírgulas como eu te engolia no sonho. A diferença é que eu sei por que sonhei.

 

II

Falei pra minha psicanalista que eu achava que, se fodesse contigo, eu ia me foder. É que a vida cuidou de te fazer apaixonante e de mim apaixonada. Nessa conta, o resultado é alguém tomar no rabo. 

Assim mesmo, quando a gente combinou de foder, eu cliquei sorrindo num estou-ciente-e-quero-continuar imaginário. É que ficou na minha cabeça a pergunta perspicaz da minha analista: “Olha, se você vai se foder sempre, se a vida vai lhe foder de todo jeito, não dá, não, pra curtir essa foda com a vida?”. Mas tu desmarcou em cima da hora, dizendo que depois a gente combinava outra coisa, e eu fui sozinha aonde queria ir contigo, pra ver se eu conseguia gozar com a vida, já que contigo não rolou.

Assim que cheguei ao restaurante, aquele da primeira vez, tocou a música que tu nunca vai saber qual aqui dentro é toda tua.

A vida me fodeu rápido dessa vez. Só que eu não curto sexo anal.

 

III

Tinha dito pra mim mesma que, depois de tu ter desmarcado naquela vez, eu ia esperar mensagem tua marcando alguma coisa só até umas sete e meia. Depois disso, ia inventar qualquer saída. Tava, então, escolhendo com uma amiga o bar aonde ir quando tua liberdade se anunciou no meu celular: “Tô livre aqui... Mas são quase oito. O que daria pra gente fazer?”.

Deixei a amiga no vácuo e anunciei minha liberdade também:

— Chamegar, dançar, transar... A gente pode fazer isso tudo!

Tua resposta, nem um minuto depois, foi teu endereço.

— Já avisei ao porteiro. Pode entrar com moto e tudo.

A gente não dançou uma música. Não confiei muito no meu forró. Mas fodeu e trepou o tanto que quis. No nosso tesão eu confiei. A moto ficou a noite toda na tua garagem.

 

IV

No banho, lembrei que precisava checar se havia guardado tudo o que era meu. Te disse que achava que não tava esquecendo nada, mas avisei que ia revirar os lençóis da tua cama pra ver se não tava deixando algo.

Sempre esqueço alguma coisa aonde vou, porém dessa vez quis ter certeza de que nada ficava porque tu já tinha dito que era até chavão a pessoa se permitir esquecer suas coisas em casa de ficante. Isso era a própria vontade de não ir embora, tu falou, e eu não suporto chavão, embora quisesse ficar, sim, mais um pouco.

— Talvez o cheiro? Acho que na minha cama tu tá deixando só teu cheiro.

Cheiro é presença que se flagra em falta fragrante. Só não sei se o meu encarna feito o teu.

 

V

Tava tentando não pensar em ti quando minha filha pediu pra ver de novo o próprio nome tatuado acima do meu seio esquerdo. Abri a blusa e o peito. Ela disparou contra mim ao dizer que é legal demais tu ter uma tatuagem no mesmo lugar do teu corpo com o nome da tua filha.

Ouvi tua gargalhada mais alta zombar da tal da sincronicidade.

 

VI

De saudade, aprendi a dançar forró direito. Fiquei devendo ao meu corpo e ao teu esse chamego.

— Agora posso lhe dar o forró que ficou faltando da vez passada! — te disse por mensagem.

— Da próxima vez, a gente supre essa falta! — tua resposta não demorou a chegar — Vem sábado de novo! Arranjei com uma amiga pra minha filha dormir na casa dela.  

Cheguei à tua casa com Hilda Hilst na boca:

— “A minha casa é guardiã do meu corpo e protetora de todas as minhas ardências”. Li esses versos essa semana e me lembrei de ti.

Tu sorriu e, já ardendo na minha boca, me disse entre os lábios:

— Gostei... Bora dançar lá na laje, que eu preparei uma playlist massa de forró!

— Montou até playlist?!

Eu acreditei nesse encontro! E na laje vizinho nenhum vê nada!

Tua casa protegeu as tuas e as minhas ardências.

 

VII

Tava com a cabeça sobre teu peito ouvindo teu coração regressar da imersão no gozo quando tu disse que tocava uma música dentro de ti. Eu quis saber o que teu coração ouvia.

— É a música do papai. — E você a cantou baixinho.

Eu, que, dentro do teu abraço, não lembrava nem que tenho pai, achei de uma delicadeza absurda que teu coração evocasse o amor mais forte que teu peito carrega quando é preciso manejar os afetos que mesmo a mais casual das transas pode fazer assomar. Então, entendi o verso daquela música tatuado na tua perna. É que entre o azul do céu e o verde do mar, sim, tanta coisa linda há, mas nada mais bonito que a criança dentro de ti cantando com o pai “Se você vem comigo, eu não choro mais”.

— Mas — você disse num daqueles teus rompantes cheios de sorriso convicto — não entendo por que uma parte da música diz “Amanhã tudo pode acontecer / Hoje nossa vida é pequena”! Nossa vida nunca foi pequena! A vida não é pequena! É por isso que amanhã tudo pode acontecer! É porque a vida é I-M-E-N-S-A! Se eu pudesse, eu mudava só essa parte da música!

Concordei contigo. E também com o verso que diz que teu sorriso atrai entre as coisas mais lindas. Esse verso eu não mudaria. Nem teu pai também, eu acho.

 

VIII

Fui a um café novo no Benfica que tu, como eu, tanto gosta. Um amigo queria me falar de um livro sobre encontros amorosos (ou não necessariamente tão amorosos assim) que quer escrever a quatro mãos. Duas das mãos são as que você pediu para eu enfiar em você.

Descobri ali que bluetooth alcança distâncias maiores que 12 km, porque tenho por certo que o som do lugar reproduzia tua playlist. Mal consegui entender que a sincronicidade, bem ao teu jeito de amar, rebolava na minha cara à batida de “Vai descendo devagar / Não precisa se apressar / Se eu sentar, tu vai pirar”, enquanto meu amigo falava do poder que as crônicas têm de apresentar com bom humor as intimidades presentes nas relações.

Argumentei – tentando não lembrar que, naquele clima quente, eu te abracei e foi subindo um vapor – que as crônicas do livro precisam ter todo tipo de relação e personagens. Ele concordou, dizendo que o livro era pra ser uma expressão “da liberdade de viver e de amar”, assim do jeito que tá no teu Tinder. A sincronicidade subia e descia violenta na minha cara. Não ouvi o que ele falou logo depois. Tava alto aqui dentro o volume da lembrança de que tu rebola gostoso e esse é teu jeito de amar a vida. Consegui me concentrar no meu amigo de novo quando lembrei que, quanto a tu sentar e eu pirar, tu ficou só no “Há de dar certo” – como se eu quisesse elegância linguística – e depois nem isso. Acho que tu foi rebolar lindamente em outro baile.

 

IX

Na última vez em que acordei contigo, tu disse que tava doida pra me levar a um restaurante novo. Chamego, o nome do restaurante e do que tu me dava naquela hora. Mas não rolou. Nem nosso chamego rolou mais. Só que esses dias eu soube que lançaram por lá um drinque chamado Diadorim. Tu zombava quando eu falava da sincronicidade, mas não sei por que precisa haver no restaurante aonde a gente nunca foi um drinque com o nome que invoca o teu dentro de mim.   

Quando a gente começou a sair, pensei que eu ia me foder. Até falei pra minha analista isso, que — te disse — me perguntou se não dava pra curtir essa foda, já que eu, de um jeito ou de outro, ia me foder. Mas a vida não fodeu comigo, não. Comigo ela fez amor. É que, fodendo contigo, entendi onde a coragem agarra o amor, porque tive a coragem de te amar no meio de uma foda. A tal da sincronicidade até existe, mas vidas em tempos diferentes se encontram apenas para que se entenda que é preciso respeitar o tempo do desejo. E mesmo que comigo tu não tenha feito amor, a gente fodeu a delícia que fodeu. Tu levantou da cama dizendo que tinha gozado horrores e eu tive orgasmos múltiplos. Contigo e com a vida.

A falta do teu chamego eu deixo aqui, que ela me sussurra segredos da liberdade de viver e de amar e é desse jeito que tu é um sentimento meu.

 





Susy Almeida, cearense, escritora e professora. Cursou Letras (Português-Alemão). É mestre e doutora em Linguística porque nunca se desfez desse assombro. Aliás, anda ultimamente ainda mais espantada com essa realidade. Não parece ser coisa que se cure, el suspeita, e, então, persegue os segredos linguísticos como quem busca a vida. É autora de A linha do desejo, seu primeiro livro de poemas, e uma das autoras presentes na coletânea fissura (Editora Nadifúndio, 2020) e Histórias de uma quarentena (Holodeck Editora, 2021). Sua crônica "Aperte!" faz parte da antologia de crônicas do Prêmio de Literatura Unifor 2021, publicada em março de 2022. A crônica "Minha psicanalista está de licença: uma crônica em associação livre" faz parte da coletânea Travessia, publicada, em outubro de 2021, pelo II Concurso Literário da Semana do Servidor UFC 2021. Publicou, também em 2021, o microconto Psicanálise de Bar na revista Rés. Foi cronista do coletivo literário Bora Cronicar em 2021 e 2020, ano em que a zine pulsão foi publicada pela editora Aliás, de Fortaleza. Publica poemas, microcontos, contos e crônicas em sua página no Instagram (@susyanne.ac) e é professora da Casa de Cultura Alemã (UFC)."