Breve crônica de inverno para uma infeliz cidade | Luiz Henrique Gurgel

 por Luiz Henrique Gurgel__



                                                                                                  Fotos: Bianca Neves, Lucas Marcomini e André Spilborghs







A cada manhã, para ganhar meu pão, atravesso as ruas do bairro, passageiro num ônibus, vendo o sol fraco bater nas antigas casas coloridas do caminho. Ainda há muitas delas com acanhados jardins por trás de muros baixos, sem garagem, e pequenas escadas que levam seus moradores até a porta. No ônibus, nessas manhãs de inverno, as pessoas parecem se conhecer, são simpáticas e se cumprimentam como se tivessem acordado ouvindo Penny Lane: “Olá! Como vai?”.


Desço do coletivo e percorro outras ruas, mais agitadas, e que vão dar na estação. Repletas de sacos de lixo amontoados junto a postes, aguardando a coleta, resultado da faxina de garis, na noite anterior, recolhendo os restos de botecos da rua Diana. Ainda assim parece que há um sorriso coletivo estampado nos rostos que passam. Até PMs em ronda lembram os gentis policemen londrinos, cantados por Caetano, satisfeitos em dar informações para quem esteja perdido ali no mangue de ruas feias daquele pedaço de uma cidade. Cidade que parece estar sempre em dúvida sobre si mesma.  Por ali também passam as meninas esforçadas e sonhadoras, de mesma deselegância discreta, apressam o passo para o trabalho nas lojas, consultórios, salões de beleza, escritórios. São manicures, recepcionistas, vendedoras de roupas – daquelas amontoadas em bancas -, seguranças de shopping, atendentes em botecos copo-sujo ou que ainda estão correndo para pegar o trem e sacolejar até a capital.


De um pequeno caminhão de gás, parado rente ao meio-fio, sai baixinha a melodia famosa, enquanto um hábil carregador leva dois bujões azuis, pesados, um em cada mão, e como um percussionista, ao mesmo tempo bailarino, faz com que eles se toquem afinadamente e no tempo certo entre o vão de suas pernas a cada passo dado, em harmonia com a vinheta sonora.

Na porta da pastelaria, o senhor Liu, chinês encastelado há mais de 40 anos naquela esquina, cofia seu bigode Fu Manchu e observa o movimento, enquanto lá dentro no balcão, logo cedo, um homem solitário saboreia o pastel de carne moída salpicado de pimenta vermelha.

Eu ainda tentava buscar o infinito azul do suburbian sky que se esgueirava entre o imenso viaduto cinza e a ponta dos telhados de velhos prédios envergonhados que ficaram por baixo, fachadas descascadas e cobertas por anúncios tortos, neons carcomidos, não havia para mim a moça de voz demi-sec a cantar Billie Holliday pelo caminho e muito menos o menino contratenor, com boné cheio de moedas no chão, entoando alguma ária conhecida para aliviar a suja sonoridade daquela hora. Também não via uma versão local da dura poesia concreta das esquinas, mas versos de um poeta perdido, resistindo no asfalto das quinas das esquinas, confundidos aos restos de faixas de segurança. Quem ainda lê poesia? Será que mexe com o juízo do homem que vai trabalhar?


Continuo no caminho e solfejo quieto o que conheço entre os ritmos de Penny Lane, London, London e Sampa, eu também a caminho da estação que ganhou o nome de um grande sujeito que a essa altura nem imagina no que se transformou aquele projeto (in) feliz de cidade.


 





Luiz Henrique Gurgel - É paulista de Santo André, professor que se debandou para o jornalismo há mais de 20 anos. Trabalhou com projetos editoriais do Estúdio Elifas Andreato, em São Paulo, onde fez parte da equipe de criação e foi um dos editores da revista Almanaque Brasil, extinta publicação de bordo da TAM Linhas Aéreas; ainda com Elifas foi pesquisador e redator da série em fascículos “História do Samba”, lançada pela editora Globo. Também participou da equipe de programação da Galeria Olido, centro cultural da Prefeitura de S. Paulo, logo após sua inauguração em 2004, responsável pelas atividades com literatura. Como free-lancer, teve reportagens publicadas por Caros Amigos, Revista Brasileiros, Diário do Grande ABC entre outros. Atualmente trabalha com projetos educacionais e está concluindo uma pesquisa de mestrado sobre Carlos Drummond de Andrade na Universidade de São Paulo. Como free-lancer, teve reportagens publicadas por Caros Amigos, Revista Brasileiros, Diário do Grande ABC entre outros.